terça-feira, 14 de abril de 2020

Sintra 2045


Sintra, Abril de 2045.O presidente da Câmara, Braima Djaló, descendente de caboverdianos, saía dos Paços do Concelho no velho Sintra Fórum depois de uma videoconferência com o ministro europeu da Economia. Lech Zibrinski despachara localbonds para o financiamento de obras no concelho, Diógenes Durão, o delegado europeu para o distrito de Portugal, acertaria depois as verbas para o novo CICV.
O concelho crescera e tinha já 700.000 habitantes, mais de metade de origem africana. O canal de TV local, o Sintra Sky Network era dirigido por Gustavo Facas, neto dum conhecido DJ dos anos 10 e o vereador dos média, Simeon Pereira descendia de emigrantes romenos radicados no Mucifal.
Djaló era dinâmico e audaz. Antigo rapper, fora eleito através do velhinho Instagram, e tinha projectos para o concelho: o Instituto Graça Freitas de doenças infecciosas abriria em 2046,bem como a Universidade Cristiano Ronaldo, em Colares, em homenagem ao comendador, agora com 59 anos e proprietário do Praia Grande Hilton e dum resort no antigo Palácio da Pena. No plano desportivo, a fusão de todos os clubes desportivos concelhios originara o Sintra Sad, presidido pelo antigo internacional Bruno Fernandes, que depois de adquirir o Sporting em 2024 prosperara na área dos media.
Com 50% de desempregados, designados pelas estatísticas como inactivos orgânicos, número de que nunca recuperara desde a Grande Depressão de 2020, causada pela pandemia do Covid 19, Djaló criara um plano de reforma para aqueles que tivessem frequentado pelo menos dez cursos de formação profissional. Mas o principal problema era a violência.Ganhara as eleições com a promessa de legalizar a violência urbana, desde que não se ultrapassassem cinco roubos por esticão e três assaltos por ano, considerados como falta leve no cadastro digital, controlado por um QR code de 4ª geração, criado por informáticos dum cluster de Alfaquiques. Apesar disso, todas as noites havia desacatos na linha de metro de Mem Martins, obrigando à frequente intervenção por parte da Força Ninja, recrutada entre veteranos da guerra de 2036 contra os Estados Unidos, na qual Portugal participara integrado no Exército Europeu.
Atendendo uma chamada, Simeon, em holograma, anunciava entretanto que o busto do escritor Miguel Real estava pronto para a inauguração na antiga Volta do Duche. Com milhares de downloads de e-books por ano, Real era uma referência de Sintra e da literatura desde que ganhara o Nobel em 2024.Ali ficaria, ao lado do Memorial à Grande Hecatombe de 2020, quando Portugal sofrera a grande pandemia infecciosa, sobreviventes e familiares dos falecidos ali depositavam flores com frequência, exorcizando esses anos de incerteza em que 90% da população perdeu o emprego e sobreviveu mais de sete anos na maior penúria. Muitos ainda usavam máscaras de proteção, e durante anos o vírus ainda deixou um rasto de mortalidade sazonal, combatido agora, contudo, com uma vacina à base de óleo de fígado de bacalhau e leite de coco.
As coisas eram diferentes agora, felizmente,e com Djaló, Sintra voltava a ser cool e progressiva. A imagem romântica em que se insistira no passado não pegara e desde os anos vinte, com o colapso do turismo que se apostava na Sintra tecnológica, com indústrias criativas e a abertura de empresas de base tecnológica em Morelena e Negrais. Os call centers em videoconferência, os transgénicos de estufa, a par de fábricas de carros a biodiesel no Cacém, foram a base da retoma. Doces tradicionais como a queijada ou o travesseiro haviam desaparecido, substituídos por uma versão light sem açúcar nem ovos, dentro do plano de combate à obesidade, e que igualmente banira o courato, o hambúrguer e o cozido à portuguesa.
Anteriores presidentes haviam apostado no teletrabalho e na privatização dos serviços: o urbanismo era agora gerido por uma consultora de Marbella, as obras municipais por um consórcio, um franchisado duma empresa de Taiwan, pelo que a autarquia, agora designada smart village, apenas dispunha de 70 funcionários em permanência, ganhando cerca de 300 yuans digitais por mês (o yuan, moeda chinesa, era agora a moeda mundial, depois do estoiro do euro em 2020, após a Grande Depressão). Até a justiça fora privatizada e entregue por cem anos a uma holding, a Isaltino, Vara e Associados, com sede nas ilhas Caimão, e filial em Lourel.
Depois da conversa com com Zibrinski, Sintra, sob a sua presidência, finalmente teria um Centro Integrado para a Conservação da Vida-CICV, algo em tempos chamado hospital, uma empresa de saúde onde os doentes comprariam quarto e assistência em time-share, podendo trespassá-lo, após o tratamento e a liquidação dos impostos. O acesso seria permitido após um chip do genoma atestar a veracidade da doença e a situação fiscal do candidato, e seria gratuito para todos os que se houvessem reformado aos 90 anos e desde que provassem viver em casa dos pais. Em 2060 terminaria a revisão do 3º Plano Director, e a torre biónica das Azenhas do Mar, com 750m e apta a receber cinquenta marisqueiras ficaria finalmente pronta, mas como o mar sumira, graças às alterações climáticas, grandes projetores e plasmas transmitiam a sensação do que em tempos fora o Oceano Atlântico. Agora, sim, um Admirável Mundo Novo chegaria a Sintra pelas mãos do visionário Djaló.

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