"Caro Rogério
Observo um Glenffidich, com gelo, em fundo, toca a dança dos espíritos abençoados, do Orfeu e Eurídice. Mais um dia de quarentena, tardia que está esta envergonhada Primavera, e o regresso à liberdade. O sol espreita tímido, mas para quê sol nos corpos, quando gelam as almas? Odeio estes dias do dito "confinamento". Dantes a família almoçava aos domingos, depois da missa. Já não há famílias, nem missa. Que saudades do passeio de barco ao Ginjal, no fatinho à marujo, a comer enguias e a visitar a avó, que esperava com bolo de noz e scones com geleia. Nunca mais comi bolo como esse. Também têm passado, os sabores, Rogério, e muitos deles sem futuro. E o rádio, com o relato da bola, que saudades do rádio, gritando cada penalty como se o locutor fosse ter um enfarte.
É, o passado está todo aqui, numa prateleira, nos retratos em álbuns, arquivos mortos de vidas passadas. Cansei do Gluck, agora que deram os mortos da Espanha, oiço agora o Strauss, Rogério, uma valsa, que seja, encerra juventude e nostalgia, só por isso, outro Glenfiddich, raios partam o Famous Grouse, está cada vez mais martelado. Engraçado. Nunca estive nesse passado, com valsas e palácios, mas também ele é passado do meu passado. Cliché. Bonito. É sempre bonito falar do passado, por nostalgia ou arrependimento. Tem uma vantagem: ao menos tem-se passado. Vou apagar a televisão, chega de electrodomésticos e de mortos, por hoje!
Não mexe uma palha lá fora, sabes, só uma velhota sem máscara a caminho da padaria, cá dentro, corre um vento intranquilo. Que presente recordaremos daqui a vinte anos como sendo um bom passado? Os copos que se beberam? A infância dos filhos, ingénuos e puros, azul ou rosa, como os fatinhos lhes enfiámos à nascença? Queria ouvir Jim Morrison, mas estou intemporal, apetece-me música de salão, hoje. Oiço a Annen, Rogério, sim, a polka 117 de Strauss, grande música para um slideshow de vida, feliz e realizada. Para os infelizes, antes Philip Glass ou Bartok, eu quero evadir-me, quero Glenffidich, vou aumentar o som e dizer à vizinha que enlouqueci, e que o som é a conselho médico!
Engraçado, Rogério, sinto-me um pássaro numa melodia de Dvorák. Dantes todos os dias eram de Vida, sem separar por semanas, décadas, gerações. Olha, bebe um copo à minha saúde e diz ao mundo- ou pelo menos ao caseiro- que o Arnaldo da Nóbrega desistiu de viver. Só ouvia vinis, e num mundo onde já não se vendem pontas de diamante, riscou-se de membro do clube. Que partiu, ao som de Annen, levando os livros, os sonhos, o perfume de Sofia, muitos passeios ao Ginjal e o bolo de noz da avó. Auf Wierdersehn! É forte, o adeus em alemão, seguro e sem lamechas. Rogério! Maldito, se não fosse a tia Zita já te tinha esfrangalhado, degenerado! Olha, pensando bem compra mais uma garrafa de Glennfiddich e deixa-me aqui à porta, imprestável!
Assina: Arnaldo Nóbrega, vendedor de insónias"
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