sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Por Sintra


Em espectral cenário, um tempo de deambulante passeio. Passeio sabendo a serra ao lado, milenar guardiã e larvar berço de lendas e histórias, de mouros e cristãos, visionários reis e viajantes, aristocratas e feiticeiros, espantados com o renovado verde, em presépio aninhando casas, palácios, fontes e miradouros. Em volta batem ritmos e matizes, surpresas e ilusões, alunos para a escola e funcionários para o serviço, senhoras para as compras e reformados para o jardim, agrilhoados contribuintes a pagar o dízimo ou utentes contando cêntimos para a conta da água.
Fugindo da selva de intrusivos carros e denodados arrumadores, deixamos os anzóis do Brancana e as apólices do Catarino, a garagem agora azul, depois dum passado negro, a Ideal e o prateado Faria, antes da Vila e dos skaters invadindo a Estefânea da Marrazes e Simões, do Tirol e Monserrate, dos chineses dos guarda-chuvas e velas, e também dos bancos, centros de usura predadores dos fracos.
O Carlos Manuel do povo fechou, aristocrático vestiu roupa nova, casa de ópera e Cadaval, desaparecida plateia de filmes a cinco escudos, de John Wayne e Cantinflas. E também de Maria João Fontaínhas e Alvim, operários da cultura num tempo em que não era proibido sonhar.
No trilho da vila, chamado pelo silvar ventoso e perfumado da serra, lá está a Correnteza, miradouro e varanda, parapeito de amores e de pombos, do Larmanjat ninguém já lembra, ondulante e inseguro. Como sempre, chegam turistas e mirones, a descobrir o éden terreal, e rostos de muitas estações, baptizados e funerais, festas do Cabo e da vila, cúmplices envelhecendo com a serra, fria no Inverno e cacimbada no Verão.
A viagem espectral chega ao momento zenital.Aproxima-se o burgo velho, e o som cadente dos cavalos, pretérita lembrança de reis e burgueses, dos Maias e do Alencar, de Garrett e Zé Alfredo, Anjos Teixeira e M.S.Lourenço. Vernacular, o torreal município é porta de entrada e fronteira, o leão de pedra o guardião, palpitantes os sentidos à vista da miríade encantada, a curva do Duche, o canelado odor da Sapa, o Valenças e as mansões, a água da fonte mourisca, jorrando, cristalina. E o Grande Maior, da feiticeira Llansol, as camélias de Nunes Claro, o vulto do Carvalho da Pena cavalgando, vetusto druida da serra e dos lagos.
Ofegante, chega enfim a vila, utópico altar de poetas, lusitano reino dum palpável Parnasso. Não se vêm, mas pressentem-se, Rui Mário, Zé do Sabugo, Paulo Campos dos Reis, generosos actores de muitas gerações, as danças medievais e os bailes das camélias,bem como os vitoriosos patins do Raio e do Cipriano. E gulosos se saciam os sentidos na Periquita, absorvendo segredos de açúcar quais orgias do paladar, à sombra tutelar do Paço.
Apurados os sentidos, a escadaria enfim, para hipnotizados mirar o castelo e invisíveis ogres lançando caldeirões de azeite, e catalépticas bruxas invadindo a noite em invisíveis vassouras, e escutar os passos dum rei prisioneiro, e o ecoar das festas joaninas, Camões lendo para um rei alucinado, a condessa d’Edla e Viana da Mota acorrendo ao repicar do sino em S. Martinho.


Invisíveis faunos e visíveis heróis, incensados e perdidos, esperançosos e idealistas tomam então lugar no camarote do Tempo, com escolta da Nação dos pássaros, as camélias e as fontes todos abraçam, anunciando um lauto festim dos sentidos, à sombra da argêntea Lua.Sintra, eterna, única, e nunca por demais cantada.

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