Palmira
-Está lá?
– esfregando os olhos, António tentava
acordar- Está sim?
Já
prestes a desligar o telemóvel, uma voz respondeu do outro lado:
-Sim... António? Sou eu, o Marco.
-Marco! Que se passa, já viste que
horas são?
-António, tinhas razão. Nunca me devia ter
metido com ela…
-De que estás a falar? Metido com
quem?
-Veio buscar-me, eu sei... Está à
janela, desde que anoiteceu.
-Marco –
insistiu António, tentando manter a calma – andaste
a beber? Quem está à janela?
-Palmira…
A
ligação caiu. António levantou-se, num misto de raiva e preocupação. Não era a
primeira vez que Marco o acordava a meio da noite, mas havia algo diferente
neste telefonema, Marco parecia assustado. Pegou no telemóvel e ligou para o
amigo, mas a chamada foi parar à caixa das mensagens.
-Ah, que se lixe!
– apagou a luz do candeeiro, estava bêbado, por certo, nem sequer se iria
lembrar no dia seguinte. No entanto não conseguiu voltar a adormecer, ficou com
a sensação de que algo havia acontecido. Olhou para o despertador, 4:30h da
manhã. Se saísse de carro, chegaria à casa de Marco já dia. Isto é de loucos,
pensou enquanto se vestia. -Bolas, Marco,
se te encontro a dormir e a curá-la, vais ter de te ver comigo!
Saiu
de Colares e apontou à casa de Marco, na Vila Velha. Marco tinha-se mudado para
lá recentemente, escritor, trabalhava num livro inspirado na vida do conde de
Valenças, antigo proprietário do edifício hoje na posse da Câmara. Luís Jardim morrera há anos, para Marco era
uma interessante fonte de informações sobre Sintra em finais do século XIX.
Tentou lembrar-se do que ele disse, algo sobre alguém que teria ido
buscá-lo...Palmira. Quem seria essa Palmira? Uma familiar do conde descontente,
por certo, Marco tinha um talento especial para se meter onde não devia.
Passava
das cinco da manhã quando chegou ao casarão, com uma localização magnífica,
perto do velho Paço. A porta da frente estava aberta, empurrou-a, lá dentro,
tudo em silêncio, ninguém respondeu. Vasculhada a casa, nenhum sinal de
violência ou de arrombamento, talvez Marco nem estivesse em casa quando lhe
ligou. De qualquer forma, decidiu-se a esperá-lo, queria saber como ia o livro
e quem era a tal Palmira. O escritório tinha uma enorme janela com vista para a
serra, numa escrivaninha, aberto, estava um computador portátil e na parede um
quadro reproduzia a paisagem que se via da janela, com o Palácio Valenças
destacado a uns duzentos metros, conquanto no quadro um pequeno vulto branco
surgisse miniatural numa janela. Nem sinais de Marco. Sentou-se diante do
computador, estava aberto numa mensagem de e-mail: “Caro Marco. Seguem em anexo as cópias dos documentos que pediu. Um
abraço. Montoito ”Anexados, três documentos.
A
curiosidade começou a mordê-lo. Abriu um dos documentos, era a escritura da
compra do palácio pela Câmara, no final dos anos 30. Um outro documento
continha a cópia de um contrato de comodato entre a Câmara e dois criados do
conde, Albertino e Palmira, um casal a quem não quis deixar na rua,
garantindo-lhes morada para o resto da vida nuns anexos do palácio, com a venda
quase todo destinado à nova biblioteca. Noutro anexo, a foto de uma mulher
jovem, a sépia, tirada aí sessenta anos antes. Havia ainda uma pasta chamada
Palmira com uma série de artigos de jornal, num deles, já antigo, o recorte de
uma gazeta de Lisboa relatava a bizarra morte em Sintra de uma criada traída
por uma paixão impossível por um patrão a quem a classe social apartava e que,
em desespero, se lançara da janela da mansão, desesperando de um amor
impossível.
António
recostou-se numa cadeira, pensativo. Voltando ao computador, abriu mais um
ficheiro. Outro recorte, com uma foto do conde de Valenças, sorrindo, em baixo
uma legenda “Aristocrata vende palacete em
Sintra ”. Observou-a com atenção e virou-se para o quadro atrás de si, era
a mesma casa renascentista: janelas trabalhadas, a serra sobranceira atrás.
Luís Jardim, o conde, morrera há muito, era a inspiração de Marco para o novo livro,
muitas vezes pusera os belos jardins do Duche à disposição do povo, para
fruição e lazer.
Havia
uma foto familiar num salão com a família do conde, a um canto, uma jovem de
olhos penetrantes servia chá num bule de Limoges, uma criada, cujas feições
chamaram a atenção de António, uma Pola Negri da plebe, pensou. No verso da
foto, os nomes de todos: Luís, Adelaide, o conde da Idanha, de visita, e
Palmira, a criada do bule. Começou a abrir mais ficheiros, à procura de partes
do livro em que Marco estava a trabalhar, embrenhado já naquela história
intrigante. Eram histórias de aparições, e relatos de cenas estranhas ocorridas
no palácio, em anos recentes. E por que motivo Marco lhe falara duma tal
Palmira ao telefone? O rascunho do livro levantava suspeitas sobre esses
incidentes no Palácio Valenças, insinuando que algo misterioso na velha casa
estaria na origem de algumas mortes, aparentemente de causas naturais, a
última, a de um subdirector do Arquivo, aparentemente de ataque fulminante,
certa vez que ficara a fazer serão. Só se deu conta que o tempo passara quando
o sol começou a aparecer no horizonte. Pela janela pôde ver os raios nascendo,
e o ruído de uma charrete enferrujada, já próximo da casa. Levantou-se,
preocupado, pensando se não seria melhor chamar a polícia, o amigo continuava
desaparecido, afinal. Na parede, o quadro já não era igual, porém. A visão do
palácio Valenças continuava a mesma, mas a janela central estava agora aberta,
e atrás dum cortinado branco via-se tenuemente um vulto de mulher idosa, o
ponto branco que inicialmente vira minúsculo no quadro. Saiu da casa a correr,
e quando chegou à rua, já na Volta do Duche, descortinando a janela do palácio
aberta, atrás do grosso cortinado foi nítida a visão dum vulto branco, igual ao
do quadro em casa de Marco, segundos antes. Palmira, já velha, espreitava,
antes que o dia nascesse. Quem levaria desta vez?
Fogueiras
na noite
Vinte
e três anos e filho de pescadores da Ericeira, Raul gostava das noites de
sábado para as suas conquistas nos bares da vila, cheia de turistas e em busca
das marisqueiras. Certa noite conheceu Vanda, uma morena de cabelos anelados e
generosa de formas, pernas roliças escondidas atrás dum vestido de chita, um
sinal na testa tornava-a ainda mais interessante. Depois duma noite de copos,
entregaram-se apaixonados no areal escuro mas cúmplice. Apesar do céu carregado
de nuvens, a primeira noite foi vivida com emoção, as estrelas brilhavam e o
luar, magnético, tinha contornos prateados.
Uns
dias mais tarde, saiu com o pai e os homens para a faina da pesca, apesar de
futuro advogado, havia que ajudar a família, dali vinha o dinheiro para o
curso. No meio da pescaria, a nortada chegou de mansinho, para logo o mar ficar
encrespado com vagas de três metros. Com a borrasca, a embarcação não conseguiu
voltar ao porto e acabaram arrastados para lá de Santa Cruz, aí lançando ferro.
Extenuados, levando o barco para junto da praia e sem rede de telemóvel para
contactar a capitania, acomodaram-se num pinhal vizinho, pensando ali passar a
noite e regressar no outro dia, no barco se possível. Atento, Feliciano, um dos
pescadores, apontou uma clareira donde vinha uma luz e dirigiram-se para lá. Já
perto, começaram a escutar cantos, um refrão repetitivo de vozes estridentes e
femininas, soltando gargalhadas e palavras ininteligíveis numa língua
indecifrável. Seguindo em frente, o clarão de fogo ficou mais visível no escuro
da noite, e como por encanto, abriu-se uma clareira, onde protegidas pelo
negrume da noite, umas vinte mulheres de rostos angulados e narizes pontiagudos
e disformes dançavam envergando túnicas negras. As mãos eram nodosas,
terminando em longas unhas, o cabelo cor de galho seco. Insistente, o vento
norte sibilava, mas nada mexia na zona da clareira.
Ruidosas,
as mulheres dançavam em torno do fogo, sobre uma pedra que mais parecia uma
mesa estavam objectos de metal e pedra, relógios, fios de ouro, pares de óculos
e outras coisas, por certo pertencentes a pessoas. Abismados, Raul e os demais,
escondidos e a alguma distância, tinham agora a certeza de assistir a uma
espécie de missa negra ou sabath. Raul já lera sobre o assunto, eram frequentes
na serra de Sintra, as mulheres lidavam com objectos de pessoas a quem queriam
mal ou dominar.Na clareira, continuaram cantando sem cessar loas
ensurdecedoras, interrompidas por gritos e risos macabros enquanto ao centro um
caldeirão exalava vapor e uma delas ia remexendo com uma grossa colher de pau.
Pegando em canecas de barro e provando da mistela, gritavam excitadas a cada
gole.
A
dada altura, uma delas parou de cantar e saiu da roda, aproximando-se da moita
onde se escondiam os homens e surpreendendo-os e soltando uma gargalhada
estridente atraiu os olhos faiscantes das outras sobre eles. Parando a dança,
uma risada em uníssono assustou Raul e os companheiros, pondo-os em fuga de
volta ao barco. Elas não os seguiram mas para eles, porém, todas as bruxas da
terra estavam ali naquele momento reunidas, antes uma noite lutando contra o
vento e as ondas, que aquela cena de terror. Depois de uma noite no barco, de
manhã e com o mar mais calmo lá voltaram à Ericeira, tão depressa não
esqueceriam o que viram.
Nessa
noite Raul encontrou Vanda no Ouriço e ainda fora de si deu-lhe conta do
ocorrido. Ela ouviu, impávida, quando terminou estranhou a placidez no rosto da
namorada. Afagando-lhe a cara, e olhando-a de perto, Raul sentiu um frémito,
com aterradora certeza sentiu já haver visto aqueles olhos antes. Eram iguais
aos da bruxa que descobrira os homens no pinhal na noite anterior, avermelhados
e hipnóticos.
Não
disse nada, sentiu que não adiantaria, estava já inexoravelmente dominado.
Pegando a mão gelada de Raul, Vanda passeou-o junto ao miradouro, disfarçando
um esgar de caçadora, segurou a presa amestrada, o sinal na testa parecia
saliente agora.
A
Terra dos Lázaros
Foi
há três anos que André se decidiu a avançar com o projecto, um filme sobre a Gafaria
de S. Pedro, a mal conhecida leprosaria no Arrabalde de Sintra. Lázaros
escorraçados e errantes ali encontraram refúgio até ao século XVI, sob a
protecção do Espitral do Espírito Santo, o argumento seria fascinante. Se não
arranjasse produtor, faria uma curta. Atraíam-no os filmes grunge, Murnau e Tod
Browning, lendo nas sombras e angustias dessas fitas grandes semelhanças com o
mundo actual.
Da
pesquisa feita para o filme, chamou-lhe a atenção uma tal Mabília, leprosa que
ali morrera em 1567, tida como feiticeira e de quem se dizia ter contraído
lepra como castigo pela prática de magia que usava para seduzir os homens e depois os roubar. Morrera
deformada e no maior sofrimento, jurando vingança.
Falando
com os mais velhos de S. Pedro, André verificou que apesar do tempo decorrido,
a história ainda era lembrada, notando porém silêncios cúmplices a cada tentativa
de saber mais, havendo quem jurasse ter visto missas negras nos Capuchos
orquestradas por Mabília, enquanto velas rodeavam animais oferecidos em
sacrifício.
Por
essa altura alguns casos ocorreram reveladores de anormalidade numa terra
geralmente bucólica e pacata, surgindo notícias em tablóides relatando o
desaparecimento de diversas pessoas sem deixar pistas ou testemunhas. Um em
Ranholas, em Março, outro no Ramalhão, um mês depois, outro ainda a quem haviam
visto pela última vez na Mourisca, pouco antes da meia-noite. Vozes delirantes,
dos que habitualmente viam filmes de terror, associavam mesmo o facto à
tenebrosa Mabília, séculos após ter morrido, se bem que sempre emprestando um
ar trocista aos comentários.
Três
pessoas estavam desaparecidas, não havia pistas, uma testemunha que fosse.
André, absorvido na concepção do seu filme e desafiado pela adrenalina do
perigo, decidiu investigar por conta própria. Passadas algumas semanas,
contudo, nada descobrira. Os desaparecidos não voltaram a ser vistos e a GNR
pensava em arrumar o assunto, para ela a dispensar grandes cuidados. Até nem
eram da terra, comentavam, se calhar até tinham fugido zangados com os familiares.
Importante, eram os gangues da linha de Sintra, e fechar bares por causa do
ruído aos sábados à noite.
Uma
noite, visivelmente alterado, André irrompeu arfando e agitado no posto da GNR
de Sintra. Não dormira na noite anterior, assaltava-o uma intuição que se
adensava no seu espírito. Visivelmente fora de si, pediu ao cabo Inácio que o
acompanhasse com alguns guardas a S. Pedro, tinha a certeza de ter descoberto
algo aterrador, tendo o grupo seguido para o local onde pela sua pesquisa a
bruxa Mabília havia dado o último suspiro, uma encosta perto da igreja de S.
Lázaro. Movido por uma força estranha, André começou a escavar e arrancar as
pedras da calçada, perante o ar surpreso dos agentes, seguros de já lhes terem
estragado a noite. Estranhamente, a terra, já no enfiamento com o largo de S.
Pedro parecia mole e húmida, como se ali tivessem cavado recentemente. Perturbadores,
restos de um braço putrefacto começaram a ficar visíveis. Nessa altura, o rosto
de André transfigurou-se, e começou a gritar palavras incompreensíveis,
cabeceando possesso. Percebia agora o que se passara. Era como se um inquilino
invisível e usurpador habitasse o seu corpo, manietando-lhe os movimentos,
vexando-o como presa ocasional para lhe parasitar o espírito e assim concretizar
uma ânsia de vingança que de tempos havia que saciar. O corpo era de um dos
desaparecidos, fora André, possuído por Mabília, quem o havia morto, tal como
os outros, embora nada recordasse.
Arrancou
a camisa e desatou a gritar, descobrindo-se marioneta sem alma e capturada por
um dono invasivo do qual não se conseguia apartar, dos seus olhos chispavam os
de Mabília. Sem o saber, ao tanto querer descobrir sobre ela na pesquisa para o
filme, o seu corpo fora por si possuído, e assim se vingava séculos depois de
ter morrido numa enxerga imunda, usando André como títere impotente do seu
plano predador.
André
recupera hoje numa casa de repouso em Mértola, quebrantado, com os olhos sempre
fixos num horizonte invisível. Mabília, dizem, ainda hoje pode ser avistada em
S. Pedro em noites de lua cheia, sentada no Túmulo dos Dois Irmãos e esperando
as infelizes presas nas noites de lua cheia.
Noite
de Halloween
Fim
do verão prolongado em Sintra, e tempo dum já esperado inverno, finalmente a
natureza retomava rotinas e cheiros de finais de Outubro. Para a velha
Gracinda, médium de Galamares e por muitos levada a sério em conselhos e
mezinhas, os espíritos dos mortos do ano voltariam nessa altura, predadores dos
vivos para neles viver no ano seguinte, dissera-o à Virgínia, durante uma sessão
espírita onde por mil euros a pusera a “falar” com o defunto Inácio. Zombando
mas ainda assim cautelosos, os homens temiam sempre esses dias de Outubro,
refugiando-se na água-pé e castanhas, bem mais espirituosos que os propalados
espíritos agoirados pela velha, perita em pragas, em tempos providencial
parteira da aldeia. Chegava o Dia de Todos os Santos e o dia de fiéis defuntos,
os velhos rumariam aos cemitérios, os mais novos, retomando a tradição pediria
pão por Deus no renovado e ruidoso ritual anual.
Na
noite de 31 de Outubro, agora também recente e celebrado Halloween, Hugo e
Jaime montaram-se na motorizada a caminho duma festa na garagem da Vera, em
Cabriz, combinada com os amigos do liceu. Vestidos a preceito, de vampiro,
abóboras com velas adornavam-lhes o muro da casa, antevia-se uma noite de
copos, fria mas aquecida pelo álcool e algum “bruxedo” mais noite dentro,
depois de providenciais dentadinhas no pescoço. Estava frio e sem vivalma,
animados, tomaram o caminho do Torrado, nessa noite silencioso e perturbador.
Apenas alguns rotweilers ladravam, à
passagem, sentado atrás de Hugo, Jaime com uma capa preta acossava ainda mais
os cães inquietos, segurando as garrafas do vodka com que a festa enfim
animaria. Junto ao moinho em ruínas, a scooter
em segunda mão acusou o peso em excesso e qual burro velho “pifou”, ainda
metade do caminho não estava percorrido.
-Bolas, é preciso azar, meu, esta
treta não quer andar mais!- rosnou Hugo, os olhos pintados de
negro, mais parecia um Zorro de segunda classe, montado numa pileca cansada - acho que por hoje não vai dar mais! -
conformou-se, dando um pontapé na roda da velha motorizada.
-Fogo, meu, ganda cena! Vamos a pé,
daqui lá é pouco mais de meia hora! Amanhã a ver se o Leonel vê o que se passa!
Bora!
Encetado
o caminho a pé, ainda mandaram um SMS a avisar do atraso, nenhum dos amigos
estava de carro que os pudesse apanhar. À passagem pela casa ao abandono do
velho Vicente, um cão preto, rafeiro, saiu-lhes ao caminho. Manso, escanzelado,
ali ficara desde a morte do velho amolador três meses antes, vadiando e
ladrando aos rapazes, conhecidos de longa data:
-Tejo, anda cá!-
gritou o Jaime- vai para dentro, meu,
andas às cadelas? Vai, vai!
O
cachorro, sem dono agora, ainda os acompanhou uns metros. Em noite sem estrelas
e falhado o candeeiro já perto da Várzea, um repentino breu envolveu-os, entre
a folhagem densa e as árvores frondosas que antecediam a povoação. Ao longe,
uma luz na casa da velha Gracinda, subitamente apagada, a velha recolhia-se por
certo, no meio das suas velas e mesas pé de galo.
Um
pouco mais à frente, uma voz roufenha cantava um velho fado de Marceneiro. Era
o Seca Adegas, bêbedo como sempre, a pé para casa. Um vulto indistinto seguia-o
a poucos metros, cambaleante mas em silêncio, à primeira não vislumbraram quem
fosse, algum companheiro de copos, Seca, borracho como todos os dias, pronto a
recomeçar no café do Sérgio na manhã seguinte. Ruborizado, cantava, com voz de
cana rachada, à vista dos dois jovens mascarados, ensaiou um ar de surpresa e
empunhou a garrafa de tinto como se fosse uma espada em riste:
-Quem são vocês os quatro, homens
de Deus? Se é para roubar vêm enganados, daqui não levam nada!
-Pôe-te lá manso, ó Seca, somos nós
não nos reconheces?
O
velho ébrio cerrou os olhos e agarrou os dois pelo ombro, mudando de atitude, o
bafo a aguardente quase contagiante:
-Oi, rapaziada! Então onde é o Carnaval? Não
pagam um copo aqui ao vosso amigo? Estou com uma sede danada, quase não bebi
nada hoje…- arrastou a voz, completamente borracho
-Vai-te mas é deitar, meu!-
afastando o braço do seu ombro, Jaime procurava libertar-se do bafo e do cheiro
a bosta, não deveria tomar banho há semanas- então e esse aí quem é?
-Esse quem?-
questionou meio zonzo o velho funileiro- não
está aqui ninguém, só vocês!...-arengou
-Aquele ali, com um casaco pre…
Antes
que terminasse a conversa, um objecto contundente tombou brutalmente sobre a
cabeça de Jaime, decepando-a do corpo, deixando o resto do corpo a cair
desgovernado, o fato de vampiro jorrando sangue na estrada de macadame. Hugo
ficou gélido, Boris Karloff de ocasião disfarçado para o Halloween. Sem que o
Seca Adegas reagisse, o vulto chegou-se à frente, para zona iluminada,
boquiaberto, Hugo reconheceu o rosto desfigurado do Vicente, lívido, e coberto
de terra, segurando um machado de cortar lenha. Atónito, esfregou os olhos, o
Vicente morrera três meses antes, como podia estar ali.
Olhando
quer o vulto do Vicente quer o alheado Seca Adegas, viu chegar ladrando
contente o Tejo, a roçar-se no regressado dono. Sem dizer nada, desatou a
fugir, a capa de vampiro ondulando, embrenhando-se no mato e deixando o corpo
inerte do amigo na viela sem luz.
Ao
passar pela casa da velha Gracinda, esta estava à porta, segurando um candeeiro
a petróleo, como se já esperasse por ele. Com um riso aberto e sórdido,
apontou-o com a mão enrugada e carcomida e sentenciou:
-Acreditas agora no regresso dos
mortos? O Vicente veio buscar a sua presa. Para o ano, será o Jaime quem virá
buscar a sua! E como quem lança uma praga rematou
ameaçadora:
-Assim é, na Noite das Bruxas. Hoje
e na noite dos tempos!- e voltando para dentro apagou a
luz, desaparecendo na escuridão da casa isolada no Torrado.
Em
Cabriz, os amigos do liceu já eufóricos com a vodka preta e à luz de velas,
faziam a festa, divertidos. Vera estranhou a demora dos amigos, e comentou com
Pedro, escondido atrás dum disfarce de Scream:
-Onde estarão aqueles dois? Já
tinham tempo de cá estar, meu!
-Não te preocupes, já devem estar
com uma de caixão à cova…
Lá
fora, a serra vigiava perturbadora e a noite silenciosa escondia mais um crime
de 31 de Outubro. Alheio e brincalhão, o Tejo ladrava às cadelas no caminho do
Torrado…
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