Fim de
tarde em Sintra, o cadenciado matraquear das bolas na mesa de snooker acompanhava
as animadas tertúlias no bar. Clientes disputando uma partida ou jovens da
geração recibo verde, anónimos ou velhos conhecidos, corriam soltas as
conversas abrilhantadas por litros de ávidas imperiais que conduziam sempre à
salvação do mundo pelo fim da tarde, depois da enérgica utilização do verbo e
antes do previsível e recuperador bife com cogumelos. Rafael, Rafa para os
amigos apreciava a tranquilidade do local para garatujar letras para canções,
viera cedo, Adriano, funcionário das finanças, chegava pelas seis como de
costume, com a sala ainda tranquila, naquele dia particularmente zangado com as
notícias do Benfica, a crise a justificar medidas, um dia a crise a justificar
a democracia, reclamava, uma imperial era urgente, antes que aumentasse o
preço, irritado com a cultura de laxismo, personagem em busca de guião na
Sintra de 2017.
-Isto
só lá vai com a independência, como na Catalunha! Já vistes que Sintra tem mais
população que a Madeira e os Açores juntos? - comentava ao balcão com o Zé,
sorvendo a primeira cerveja dum trago –
e temos tudo para isso, já viste?
O Rafa,
embrenhado nos seus poemas, sorriu da mesa do canto e pediu um café, alheado,
política não era com ele. O Raposo Taxista chegava entretanto para uma
fresquinha, o Adriano continuava na arenga elevando o tom da voz, a sala mais
composta era garantia de audiências, que a pátria salva-se sempre primeiro nos
cafés.
-Pois
vejam bem, temos castelos, saída para o mar, aeroporto na Granja, indústrias,
tribunal, turismo…-ia debitando, uma imaginária bandeira independentista
passando pela vista a esvoaçar no Castelo dos Mouros, tortuosas teorias da
conspiração galvanizando o insurrecto estudante entre duas partidas de snooker
no bar e mais uma imperial fresquinha.
O
Raposo concordava, mas o essencial era sair do euro:
-Tem
toda a razão amigo, por este andar daqui a cinco anos estamos todos a comer
ervas. Deu-se cabo da agricultura, indústria não há… e a malta nova, andam a
tirar cursos para trabalhar em supermercados ou roubar. Não sei onde é que isto
vai parar!
Adriano
começava a juntar apoios enquanto o Zé aviava mais uma rodada, agora já com
amendoins, para enxugar, lá fora mais um comboio saía para o Rossio. O
revolucionário das seis da tarde continuava:
-Saía-se
do euro e fazia-se uma zona franca em Sintra, um paraíso fiscal, um cluster de
industrias criativas, davam-se isenções fiscais às empresas ecologicamente eficientes, e
universidade gratuita, paga com as receitas da zona franca, iam ver, em dez
anos éramos a Suíça da Europa- continuava, naif, o desejo de mudar o mundo dos
outros quando não se consegue mudar o próprio. O Rafa, já contagiado pela ideia
do cluster criativo interrompeu a escrita no bloco azul e juntou-se-lhes, dois
adeptos já estavam convertidos, pelo andar à meia-noite a Rádio Ocidente
anunciaria um golpe de Estado e a secessão de Sintra, micro-estado sem
exército, maior que o Mónaco ou o Luxemburgo .
O
Raposo Taxista insistia na questão do euro, já a quarta imperial inaugurava o
caminho da goela, havia que tomar medidas:
-Eles
vão ver aonde vai levar esta política. Vejam uma coisa: um país sem moeda e sem
agricultura está sempre dependente dos outros. E o que é que a gente produz?
Nada! Até as batatas vêm de Espanha, é uma vergonha!
-Claro!-
acicatava o Adriano - se isto fosse independente apoiava-se fortemente a
agricultura! A maçã reineta, as hortas de Almargem, o vinho de Colares…
-Ah,
isso sim, boa pinga sim senhor! - atalhou logo um dos jogadores de snooker, até
ali calado, debruçado sobre a mesa, distraído tocara numa bola não branca com o
taco.
-Então
mas onde é que eram os limites do tal país?- sondou o Zé, anuindo, servindo uma
tosta mista ao Rafa.
-Para
mim era assim: toda a zona rural, no máximo até Mem Martins . Já viram que daí
para lá só há problemas? Além do mais está tudo construído, não trás receitas,
é um fardo em despesas de saúde, educação, há os bairros sociais e os
imigrantes. E os IMI’s não rendem tanto assim, que as pessoas não
pagam...-rematava, estava tudo estudado, até o acordo ortográfico devia ser
revisto.
A
conversa fluía e a noite caía rápido, os dois do snooker saíram pensando serem
todos malucos, voltariam mais tarde, os conspiradores levados pelo entusiasmo
cantavam já canções patrióticas devidamente ilustradas com canecas de cerveja e
brindes à revolução, à independência e até a José Mourinho.
Já a
revolução estava em marcha, tocou o telefone, a voz furiosa e alterada da
mulher do Adriano do lado de lá obrigava a mudança de planos, o frango para o
jantar nunca mais chegava e ainda tinha de passear o cão. Obediente, lá saiu
correndo, adiando o golpe de estado para a tarde seguinte. Com uns tremoços a
acompanhar, se possível.
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