Não sendo comentador político, mas não sendo apolítico, gostaria de aqui
deixar algumas notas sobre o ato eleitoral de 6 de outubro, apontando algumas
ilações que dele (e dos últimos atos eleitorais, em geral), em minha opinião se
devem extrair.
Em primeiro lugar, ver se se confirma a consolidação da abstenção como
fenómeno endémico e que veio para ficar, ampliada agora pelo alargamento dos
inscritos a mais um milhão de residentes no estrangeiro, dos quais só cerca de
1 a 2% deverá votar. Não chega o argumento de que o fenómeno é já corrente nas
democracias ocidentais, e, não deslegitimando de forma alguma no plano das regras
os vencedores da noite, dá que pensar, e, apesar de sempre que ocorrem eleições
se falar da necessidade de refletir sobre a abstenção e suas causas, a verdade
é que contados os votos, deitados os foguetes e distribuídos os empregos
ninguém volta a falar do assunto ou faz mea culpa, dando um
contributo para a reversão da situação.
Os partidos em Portugal tornaram-se corporações de interesses e
sindicatos de lóbis, divorciados da sociedade e agarrados a dogmas, capelas e
clientelas, e aqui incluo até os ditos antissistema, no fundo também ela em
busca de um sistema.
Toda a nossa cultura e praxis política carece, porém, de
ser alterada, a começar nas mentalidades, algo difícil, pois até os jovens que
se envolvem na política acabam por corporizar e encaixar no discurso dominante
e suas representações formais, reproduzindo tiques e mimetismos das gerações
anteriores e promovendo a cultura de fação, apesar das novas roupagens e
recursos supostamente irreverentes e modernos, mas no fundo em tirocínio para
mais do mesmo.
A causa para este estado comatoso deve ser procurada essencialmente na
sociedade blindada e supérflua em que nos tornámos, atávica no maniqueísta
apontar dos bons e dos maus, reduzindo a política a um fait-divers ou concurso
de simpatias e a um reality show em prime time.
Tudo espetáculo, e contudo, com total ausência de discussão das escolhas ou
real debate de ideias, se é que ainda há ideias, mortos que estão os Ideais.
A sociedade portuguesa é avessa e diletante no que a um profundo e
cirúrgico debate de ideias efetivamente respeita, deixando o debate político
nas mãos de dois ou três grupos de media politicamente
engajados e veiculando uma opinião publicada que nem sempre traduzem a
verdadeira opinião pública, permeável ao tilintar de sound bites e
chamando política às folclóricas arruadas que anunciam a chegada do circo à
cidade. Daí que, instalado e larvar, o novo rotativismo vá secando o país que
pensa, que tem ideias, que quer inovar, qual eucalipto invasivo neste pinhal à
beira-mar plantado, capturado pelos rituais tribais, a emulação dos chefes, a
domesticação dos conversos e a frenética venda de realidade virtual. Esse país
continua por aprofundar, com ou sem eleições, e só quando o ciclo das claques
sem cérebro se esgotar (se alguma vez se esgotar) e todos,
transversalmente, oriundos daquilo que até há pouco se chamava esquerda e
direita refletirmos seriamente sobre o que somos e queremos, poderemos começar
então a tentar mudar este país na sua essência, forças e fraquezas, para lá da
mera troca de rostos e protagonistas. Tarefa difícil, porém, aquela que vale a
pena perseguir, por difícil ou ciclópica que seja.
Na liturgia do reality-show eleitoral, uns ganharão o
poder, parabéns, outros perderão, para a próxima será, a verdadeira mudança,
contudo, está ainda longe de ganhar nas urnas (se o voto é a festa da
democracia é tétrico celebrá-lo em urnas…) pois enquanto tal revolução de
ideias e comportamentos não ocorrer, o Portugal que quer e tem de mudar
ciclicamente ficará entregue aos burocratas de serviço, esperando instruções de
Bruxelas. Alguém porventura vê os partidos organizar debates aprofundados,
sentar a massa cinzenta à mesa a discutir soluções, e ouvir, argumentar, pensar
o país real, para lá dos brejeiros beijos às peixeiras, as arruadas ruidosas e
os comícios (e bebícios...) de bifanas e febras durante infindáveis e
esquizofrénicos dias?
Novos paradigmas precisam-se, auscultando a sociedade, deitando-a no
psicanalista, aprofundando o diagnóstico. Não podem nem devem os sequiosos de
mudanças ficar, porém, por aí ou mero protesto, nas acampadas folclóricas, nas
greves climáticas ou nas páginas do Facebook. Mudar impõe uma atitude ativa,
não por reação ao adversário ou sem saber para onde, arregaçando as mangas e
interiorizando a verdadeira democracia virada para as pessoas e o seu anseio
por felicidade e futuro. Esse o debate, essa a causa mobilizadora que a
sociedade portuguesa ainda não levou a sério, sobretudo por tacanhez e fraqueza
das suas anémicas elites, insistindo em não ver a floresta para além da árvore.
Enquanto tal estado de coisas continuar, enquanto a forma se sobrepuser à
essência, a abstenção e o divórcio dos cidadãos continuarão a aumentar e o país
enfrentará o desencanto que perigosos chamamentos de sereia poderão um dia
atrair para perigosos rumos.
PS- Esta não é a opinião de um pessimista. É a opinião de um otimista
avisado.
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