segunda-feira, 16 de setembro de 2019

As eleições enquanto reality show


Não sendo comentador político, mas não sendo apolítico, gostaria de aqui deixar algumas notas sobre o ato eleitoral de 6 de outubro, apontando algumas ilações que dele (e dos últimos atos eleitorais, em geral), em minha opinião se devem extrair.
Em primeiro lugar, ver se se confirma a consolidação da abstenção como fenómeno endémico e que veio para ficar, ampliada agora pelo alargamento dos inscritos a mais um milhão de residentes no estrangeiro, dos quais só cerca de 1 a 2% deverá votar. Não chega o argumento de que o fenómeno é já corrente nas democracias ocidentais, e, não deslegitimando de forma alguma no plano das regras os vencedores da noite, dá que pensar, e, apesar de sempre que ocorrem eleições se falar da necessidade de refletir sobre a abstenção e suas causas, a verdade é que contados os votos, deitados os foguetes e distribuídos os empregos ninguém volta a falar do assunto ou faz mea culpa, dando um contributo para a reversão da situação.
Os partidos em Portugal tornaram-se corporações de interesses e sindicatos de lóbis, divorciados da sociedade e agarrados a dogmas, capelas e clientelas, e aqui incluo até os ditos antissistema, no fundo também ela em busca de um sistema.
Toda a nossa cultura e praxis política carece, porém, de ser alterada, a começar nas mentalidades, algo difícil, pois até os jovens que se envolvem na política acabam por corporizar e encaixar no discurso dominante e suas representações formais, reproduzindo tiques e mimetismos das gerações anteriores e promovendo a cultura de fação, apesar das novas roupagens e recursos supostamente irreverentes e modernos, mas no fundo em tirocínio para mais do mesmo.
A causa para este estado comatoso deve ser procurada essencialmente na sociedade blindada e supérflua em que nos tornámos, atávica no maniqueísta apontar dos bons e dos maus, reduzindo a política a um fait-divers ou concurso de simpatias e a um reality show em prime time. Tudo espetáculo, e contudo, com total ausência de discussão das escolhas ou real debate de ideias, se é que ainda há ideias, mortos que estão os Ideais.
A sociedade portuguesa é avessa e diletante no que a um profundo e cirúrgico debate de ideias efetivamente respeita, deixando o debate político nas mãos de dois ou três grupos de media politicamente engajados e veiculando uma opinião publicada que nem sempre traduzem a verdadeira opinião pública, permeável ao tilintar de sound bites e chamando política às folclóricas arruadas que anunciam a chegada do circo à cidade. Daí que, instalado e larvar, o novo rotativismo vá secando o país que pensa, que tem ideias, que quer inovar, qual eucalipto invasivo neste pinhal à beira-mar plantado, capturado pelos rituais tribais, a emulação dos chefes, a domesticação dos conversos e a frenética venda de realidade virtual. Esse país continua por aprofundar, com ou sem eleições, e só quando o ciclo das claques sem cérebro se esgotar (se alguma vez se esgotar) e todos, transversalmente, oriundos daquilo  que até há pouco se chamava esquerda e direita refletirmos seriamente sobre o que somos e queremos, poderemos começar então a tentar mudar este país na sua essência, forças e fraquezas, para lá da mera troca de rostos e protagonistas. Tarefa difícil, porém, aquela que vale a pena perseguir, por difícil ou ciclópica que seja.
Na liturgia do reality-show eleitoral, uns ganharão o poder, parabéns, outros perderão, para a próxima será, a verdadeira mudança, contudo, está ainda longe de ganhar nas urnas (se o voto é a festa da democracia é tétrico celebrá-lo em urnas…) pois enquanto tal revolução de ideias e comportamentos não ocorrer, o Portugal que quer e tem de mudar ciclicamente ficará entregue aos burocratas de serviço, esperando instruções de Bruxelas. Alguém porventura vê os partidos organizar debates aprofundados, sentar a massa cinzenta à mesa a discutir soluções, e ouvir, argumentar, pensar o país real, para lá dos brejeiros beijos às peixeiras, as arruadas ruidosas e os comícios (e bebícios...) de bifanas e febras durante infindáveis e esquizofrénicos dias?
Novos paradigmas precisam-se, auscultando a sociedade, deitando-a no psicanalista, aprofundando o diagnóstico. Não podem nem devem os sequiosos de mudanças ficar, porém, por aí ou mero protesto, nas acampadas folclóricas, nas greves climáticas ou nas páginas do Facebook. Mudar impõe uma atitude ativa, não por reação ao adversário ou sem saber para onde, arregaçando as mangas e interiorizando a verdadeira democracia virada para as pessoas e o seu anseio por felicidade e futuro. Esse o debate, essa a causa mobilizadora que a sociedade portuguesa ainda não levou a sério, sobretudo por tacanhez e fraqueza das suas anémicas elites, insistindo em não ver a floresta para além da árvore. Enquanto tal estado de coisas continuar, enquanto a forma se sobrepuser à essência, a abstenção e o divórcio dos cidadãos continuarão a aumentar e o país enfrentará o desencanto que perigosos chamamentos de sereia poderão um dia atrair para perigosos rumos.
PS- Esta não é a opinião de um pessimista. É a opinião de um otimista avisado.

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