Nos setenta anos da independência da
Índia, e em dia feriado, ocasião para relembrar o meu primeiro contacto com
esse vasto país há cerca de dezoito anos.
Depois de um voo de quatro horas desde Hong Kong, o periclitante avião da Air India aterrou no Indira Gandhi International Airport. Após a experiência do Aeroporto de Hong Kong, o moderno Kai Tak, numa ilha artificial construída perto de Chek Lap Kok, a aventura de pouco mais de quatro horas até Nova Deli mostrou-se decepcionante: passageiros tirando os sapatos e dobrando as pernas sobre os assentos, um entediante filme de Bollywood com enredo e cantores pimba, caril de frango logo pelas seis da manhã, para cúmulo, a casa de banho de bordo avariara e estava atolada em trampa nem meia hora depois que o avião descolara.
Depois de um voo de quatro horas desde Hong Kong, o periclitante avião da Air India aterrou no Indira Gandhi International Airport. Após a experiência do Aeroporto de Hong Kong, o moderno Kai Tak, numa ilha artificial construída perto de Chek Lap Kok, a aventura de pouco mais de quatro horas até Nova Deli mostrou-se decepcionante: passageiros tirando os sapatos e dobrando as pernas sobre os assentos, um entediante filme de Bollywood com enredo e cantores pimba, caril de frango logo pelas seis da manhã, para cúmulo, a casa de banho de bordo avariara e estava atolada em trampa nem meia hora depois que o avião descolara.
Depois das verdes selvas do Camboja e
Vietname, a aridez castanha do Rajasthan foi-se desenhando lá
em baixo, os casebres periclitantes e a ausência de estradas ou algo que se
parecesse antevia uma realidade bem diversa da pujante China onde estivera três
semanas, em progresso e modernizada. Tocado o solo, logo um bando de velhas com
saris azuis e rosa se precipitou para a porta. Deixei-me estar, não tinha
pressa, um guia da agência deveria esperar-me com um carro para me acompanhar
nos dias que iria estar em Nova Deli.
Olhando pela janela, o cenário era
pior do que o esperado: o aeroporto da capital
da Índia era um barracão de madeira a lembrar a Rodoviária Nacional em Castro
Verde, nos anos setenta. Nada de “mangas”, pista esburacada, os passageiros
tinham de ir pelo seu pé para a zona da alfândega, sob um calor forte e seco.
Dentro do barraco a que chamavam aeroporto, impotentes ventoinhas de plástico
faziam por atenuar o calor abrasador, o ar
condicionado ainda não chegara àquelas bandas. Dezenas de indianos
de bigode e cabelo escuro oleoso deambulavam carregados de embrulhos enrolados
em cordas, muitos com barrigas proeminentes, exterior sinal do excesso de tandoori. Comecei a ficar com náuseas e só esperava que o hotel de cinco estrelas que
escolhera fossem cinco estrelas mesmo, e não cinco estrelas da Índia. Aquela
viagem fora um fetiche romântico e exótico de entusiasta pela História, só para
as vacinas passara duas horas no Egas Moniz semanas antes, pelo que a expectativa era grande.
Entre setas que tanto
mandavam virar à esquerda como à direita, lá cheguei à zona de recolha de
bagagem, um indiano desdentado e sorridente descarregava malas de mais de vinte pessoas, quase todas trouxas de roupa e material informático adquirido em
Hong Kong, pelo aspecto encomenda de alguém, pois o indiano que o recolhia não parecia
distinguir um computador dum micro ondas. As minhas malas, duas, levaram vinte
minutos a aparecer, uma cinzenta grande, com a roupa, e outra azul onde levava os souvenirs adquiridos na China: um conjunto de guerreiros terracota
adquiridos em Xian, um dragão trabalhado em jade, miniaturas de pagodes e
alguma roupa contrafeita adquirida em Xangai, boas imitações de uma mala Louis
Vuitton e chás vários, para oferecer aos amigos. Ao passar na
passadeira, a mala azul foi marcada com um giz branco por um polícia com odor a caril, que ia marcando aleatoriamente algumas malas, aí de cinco em cinco, para controlo na
zona da alfândega. Peguei nelas e no passaporte e meti-me na fila, era o
único português, e europeu, segundo me pareceu.
Chegada a vez, mostrei o passaporte,
o visto estava em dia, para 6 meses. Já me preparava para seguir quando um
polícia com bigode escuro e barba mal aparada mandou abrir a mala azul. Lá
seguiam os guerreiros terracota e o dragão de jade, alguma roupa da manhã que
não me apetecera arrumar na mala grande e o China Morning Herald. O polícia, com ar de
Poirot asiático, pegou num dos guerreiros, mirou-o cirurgicamente, e sondou com ar sério, num inglês com sotaque arrastado:
-What’s
this?- perguntou, com ar de quem detectara a jóia da coroa ou o ceptro do
marajá de Jaipur. Descontraído mas saturado do calor e do cheiro a caril
apressei-me a explicar, em inglês:
-Souvenirs.
Venho da China, de férias, são coisas para os amigos, vou ficar uma semana. O
trivial, sabe: Deli, Jaipur, Taj Mahal, o Triângulo Dourado….
O polícia colocou um ar grave e
meneou a cabeça, estava só e o passageiro seguinte a mais de três metros:
-Hummm… não sei… não será roubado? É preciso licença para entrar com isto
na Índia!- pareceu
desencantar na altura. Nunca tal escutara, eram meras estatuetas das que se
vendiam às centenas nas feiras de Xian e
Beijing.
-Pode crer, são souvenirs. Onde está escrito que é proibido?
O polícia chegou perto, e, baixando a
voz, abordou com voz complacente:
-Bom…
digo-lhe o que vou fazer. Você dá-me 50 dólares, e eu, para provar a minha boa vontade para com sahib, deixo-o ir. Se não…
Pasmei, o polícia “fazia-se” a uma
propina. Olhei em volta, nenhum europeu, estava entre a espada e a parede.
Tentei refilar, mas, acabado de chegar e sem conhecer as praxes locais, saquei
de 50 dólares, enfiei-os no passaporte e entreguei ao polícia, que, sorrindo, discretamente surripiou a nota, meteu-a no bolso e carimbou o passaporte, não
sem desejar um sonoro “welcome to India!” que danado já mal ouvi.
Era demais! Bem me haviam avisado,
países do terceiro mundo, mas logo a polícia, e ainda no aeroporto! Lá fora
deveria estar um guia com um Tata para me levar ao Taj Palace, acelerei o
passo suando de raiva a caminho da saída. Poucos passos faltavam para transpor
a porta, suja de milhares de dedadas e rangendo por falta de óleo, outro polícia, quase
sósia do primeiro, chamou-me, pedindo os papéis e que abrisse a mala azul, a
marca do giz ainda recente alertara para a mala, era supostamente suspeita,
fosse lá porque razão fosse. Ruborescido, abri e lá repeti que não, não ia fazer
negócio com as peças e que os malditos guerreiros eram para oferecer aos
amigos, “souvenirs, bloody souvenirs,
only, understand?”.
Com uma calma de jumento e enrolando
o bigode, o polícia colocou um ar clemente e lá repetiu o “formulário” de boas
vindas à Índia:
-Bom,
digo-lhe o que vou fazer….- espumando, lá saquei de mais 50 dólares, logo
correndo para a porta antes que o dinheiro acabasse e outro zeloso funcionário
me quisesse aliviar a carteira com mais um fraterno welcome. Não há como o turismo para aprofundar a relação entre os
povos… Depois, o fascínio com os contrastes da extrema pobreza com ratazanas veneradas como deusas, os esgotos a céu aberto e a espectacularidade do Taj Mahal, o profundo Rajasthan e a parafernália de Mumbai, tudo terminando no longo palmeiral a sul de Kerala onde Vasco da Gama, sem malas nem souvenirs chegara hà mais de quinhentos anos. E pronto, é feriado, e vou ouvir um pouco de Ravi Shankar a recordar o pôr do sol de Goa, os búfalos de Agra e os chás de Udaipur.
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