quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Aura, o barulho das luzes




A realização do festival Aura em Sintra, de 10 a 13 de Agosto, suscita para lá do espectáculo visual e da animação de rua uma reflexão sobre a luz e a sua (omni)presença por vezes despercebida no nosso quotidiano, seja enquanto elemento estético, seja enquanto metáfora, por oposição às trevas.
Filosoficamente, a Luz tem uma conotação positiva.Para Heráclito, o fogo era um princípio de purificação e de geração de poder. Zeus, rei de todos os deuses, tem um nome cuja etimologia indica a palavra Dyeus, significava “luz”, “brilho”, “luminosidade”, “dia” ou “céu”. Antigas crenças, provenientes da Pérsia e da Babilónia ligavam o destino dos mortos com as estrelas do céu e com a sua luz, brilhante ou baça, segundo a ventura de cada pessoa. Em Platão, assim como a luz do sol torna visíveis os objetos materiais, a luz do Bem torna as Formas inteligíveis e visíveis aos olhos da mente. Na alegoria da caverna, o nosso mundo é colocado em contraste com o mundo real e perfeito das formas pela analogia com o sol. Os homens presos na caverna podem ver somente as sombras projetadas nas paredes pela iluminação do fogo externo sobre os objetos que passam pelo lado de fora. Neste contexto, a filosofia representava uma ponte pedagógica que serviria para que esses homens pudessem passar, gradualmente, da completa obscuridade para a luz do sol que permitiria o conhecimento verdadeiro da realidade. Criou-se, por conseguinte, o problema filosófico que consiste na caminhada das trevas para a Luz e da ignorância para o conhecimento. Lembre-se Descartes, e a sua ideia de que a luz natural da razão ilumina os objetos que podem ser conhecidos clara e distintamente, ou a força exercida pelo pensamento iluminista na filosofia contemporânea, período aliás conhecido como século das Luzes.
Já no plano da realidade palpável, a luz desde há muito suscita problemas estéticos e ambientais, muito se reflectindo hoje sobre a sua correcta ou má utilização, bem como da poluição ocasionada pela luz excessiva que interfere nos ecossistemas, causa efeitos negativos à saúde, ilumina a atmosfera das cidades, reduzindo a visibilidade das estrelas e interferindo na observação astronómica. Este tipo de poluição é considerado um efeito colateral da industrialização, resultando da má utilização das luzes das casas, dos anúncios publicitários, da iluminação viária e sinalização aérea e marítima, bem como todas as fontes artificiais de luz, o aumento crónico e temporário da iluminação seja de edifícios, ruas, barcos de pesca, luzes de segurança, veículos ou plataformas petrolíferas.
Alguns processos naturais só podem acontecer na escuridão, como o repouso, a predação ou recarga dos sistemas. Por esta razão, a escuridão possui importância igual à da luz do dia. A poluição luminosa pode confundir a navegação animal, alterar relações entre presas e  predadores e afectar a fisiologia dos animais. O aumento da claridade do céu à noite representa o efeito mais visível, e os astrónomos já o reconhecem. Numa escala global, aproximadamente 20% de toda a electricidade utilizada é no período da noite. O produto final da iluminação eléctrica gerada pela carbonização de combustíveis fósseis é a descarga dos gases do efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento global e pela exaustão dos recursos não renováveis.
Para além de ser prejudicial para os animais nocturnos, migratórios ou em voo, o efeito da luz na forma de fogo ou de lâmpadas atrai as aves migratórias e não migratórias durante a noite, e tem sido utilizado como uma forma de caça, já que a desorientação das aves que usam o horizonte como orientação é interrompida pela claridade. A luz artificial provoca graves efeitos nas tartarugas que procuram locais para postura e nas crias, que têm que encontrar o mar. Muitos estudos mostram que os peixes evitam fontes de luz branca, e existem espécies que são atraídas pela luz, o que é utilizado para os apanhar, dada a adaptação dos olhos dos peixes a um ambiente escuro e possíveis danos nos olhos devido a luzes mais brilhantes. Na aquacultura do salmão, a luz que se encontra submersa aumenta a profundidade de natação e reduz a densidade do salmão do Atlântico em jaulas de reprodução.
Devido ao facto de os oceanos possuírem menos fontes de luz artificial comparando com ambiente terrestres, o efeito e alcance de uma única fonte é muito mais elevado. Como consequência destas circunstâncias, as aves marinhas são altamente atraídas pelos faróis das plataformas e podem ficar directamente aleijadas ou morrer devido ao efeito de armadilha da luz que faz com que as aves circulem à volta da fonte de iluminação, reduzindo as suas reservas energéticas e tornando-as incapacitadas para alcançar a costa mais próxima ou diminuindo a sua habilidade para sobreviver ao inverno e à reprodução.
Sistemas de iluminação inadequados estão relacionados a diversos problemas de saúde. A iluminação noturna pode causar problemas de sono, depressão e cancro. O efeito atrativo que a luz exerce sobre os insetos também tem consequências sanitárias. Insetos transmissores de doenças tais como malária ou a leishmaniose podem ser atraídos por luzes e assim aproximar-se de populações humanas.
Para minimizar os efeitos negativos da iluminação artificial, são necessárias novas estratégias de iluminação. A luz tem que ser usada de um modo preciso e as regulações devem ser implementadas através de leis. O senso comum diz que ambientes urbanos mais iluminados são mais seguros, por isso, gasta-se muito com a iluminação pública. Porém vários estudos indicam que a iluminação pública, quando mal planeada, pode ser mais maléfica que benéfica. As lâmpadas ofuscam os olhos das pessoas, permitindo que os criminosos que se escondem em locais que não são diretamente iluminados não sejam vistos. Ou seja, mesmo que as pessoas tenham uma sensação de segurança maior em ambientes bem iluminados, isso não quer dizer que elas realmente estejam mais seguras.
Enfim, todo o mundo da Luz está para urbanistas, planeadores e decisores ainda muito às escuras, e não entrou a sério da forma de construção das cidades. Para já, com o Aura, teremos luz em Sintra por estes dias, ela que já é a Cynthia promontorial donde atlantes poetas sempre partiram em busca da Luz, e para se reflectir, quiçá, sobre o barulho das luzes.

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