O infinito. Nele que se fixava o olhar perdido da Gracinda, os olhos baços de muitos dias chorados, em tempos esperançosos. Diariamente encetava a caminhada peregrina até ao café do Jimmy, carinhoso nome do Jeremias, novo no bairro e antigo universitário, sua única distracção na vida capturada pelas varizes e reumático. O marido partira há muito, com o filho na Suíça, oitenta lamurientos anos se arrastavam rua acima a ver passar os outros, que a vida por ela passara já.
Naquela
terça-feira, mais uma das muitas e invernosas que com inclemência açoitam
Sintra, pontualmente às três subiu a ladeira que conduzia ao café do Jimmy, e
postou-se na cadeira do costume. O café era recente, não tão recente que não
tivesse já criado hábitos, atraindo jovens a estudar e clientes a experimentar
as tostas ou saborear o abafado. Além da Gracinda, a decana improvável, jovens
haviam adoptado o espaço, que aos poucos criava familiaridades,
arrastando alguma fauna em transumância, ensaiando jam sessions, insegura no
acorde mas puxada pela onda.
A Gracinda
e alguns velhotes que, embalados pela guitarra dos putos, por vezes
puxavam da voz já roufenha, emulando fados antigos, conferiam ao bar uma
atmosfera felliniana. Ali, entre piercings e tatuagens, ícones de tempos novos
e irreverentes, juntava tempo ao tempo que a custo passava, suspirando e
sorrindo, um sorriso de outro século e outros tempos, hoje a sépia, rodeado de
holográficos rostos, desaparecidos, deixando escapar a areia na ampulheta dos
dias sem razão de ser senão esperar o dia em que se juntaria ao Armindo,
há vinte anos já lá. Sentia esse dia próximo, ao subir a viela já mais de uma
vez dera conta dele a seu lado, arrastando-se a caminho do café do Jimmy para
ver a vida passar, já sem vida para passar.
O Jimmy
sorriu à chegada da velhota, improvável cliente num bar de gente nova.
Prestável, muitas vezes acorria a dar-lhe o braço, quando enfim, suspirando e
despedindo-se várias vezes, voltava à casa vazia no fim da viela, numa
procissão lenta e sincopada que invariavelmente fazia parar os carros para
atravessar a estrada, em marcha lenta, recolhendo às memórias e ao retrato do
Armindo, que tão cedo a deixara.
Na
terça-feira, a Gracinda chegou cansada, mas mais do que o habitual. Saudou os
presentes, com a voz entramelada, logo se acolhendo na habitual mesa de onde, urbi
et orbi,saudava os passantes, que, achando-a patusca, lhe acenavam, ou tiravam
uma foto até. Os olhos, habitualmente vivos e brilhantes, apesar dos anos,
estavam nessa tarde mortiços e baços. Pediu um carioca de limão, e deixou-se
ficar, mais silenciosa que o costume. O Jimmy, voltando ao balcão, achou-a
menos expansiva, e meteu conversa:
-Ora, D.
Gracinda, não se apoquente, os sonhos nem sempre traduzem o que o nosso
subconsciente pensa- asseverou o Jimmy, algum tempo num curso de Psicologia
dava-lhe a autoridade para interpretar o sonho. Apesar de sentada, a Gracinda
colocava-se na consulta do especialista, desviado para outras consultas, muitas
delas balcânicas, passadas ao confessionário-balcão, ouvindo os desabafos em
torno de providenciais abafados.
Como
habitualmente, as artrites e o reumático deram parte de fraco e um
dos jovens com um computador deu-lhe o braço, levando-a a atravessar a rua
e deixando-a ao cimo da viela, onde só desceria os metros finais.
Nem dez
minutos eram decorridos um burburinho pareceu vir do lado da viela da Gracinda.
Curioso, Jimmy foi espreitar, seguido de alguns dos jovens. Três velhotas, com
um ar alterado, rodeavam um volume, que não distinguiu o que fosse, talvez o
cão da Telma, estava sempre a escapulir. Aproximando-se, o corpo da Gracinda
jazia no meio da rua, de olhos abertos e sorriso nos lábios. Uma síncope
fulminante interrompera a procissão a caminho da casa vazia, desta vez, longe
demais. Rodeado pelos putos do
café, Jimmy ficou em silêncio,
cerebral nestas coisas, não lhe ocorreu nada para dizer, registando o rosto
esbranquiçado da velha peregrina de dias vazios. Retornando ao bar, enquanto a
sirene fazia anunciar a chegada da ambulância, e onde já um turista aguardava um abafado, na direcção da Vila Velha,
alheios à agitação que o sucedido trouxera à tarde invernosa, Jimmy viu passar um casal idoso de
braço dado, de costas, um deles pareceu-lhe familiar. Curioso, foi-lhes no
encalço. Já na Volta do Duche, serenos e felizes, lá seguiam a Gracinda e o seu
Armindo, que enfim voltara para a buscar e juntos continuarem a Estrada
que um dia juraram trilhar.
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