Sintra,
2047.O presidente da Câmara, Djaló Varela, quinta geração de cabo-verdianos da
Tapada das Mercês, agora património mundial, saía dos Paços do Concelho no
velho Sintra Fórum, para reunir com o novo ministro europeu da Economia. Lech
Zibrinski despachara verbas para obras, e estaria em Lisboa nos dias 3 e 4.De
TGV, a partir de Bruxelas seriam 4 horas, com paragens em Paris e Madrid, com
ele e Diógenes Durão, o delegado para o distrito de Portugal, acertaria as
verbas para o novo CICV de Sintra.
O
concelho crescera, e chegara aos 700.000 habitantes, mais de metade de origem
africana, abrira um canal de TV, o Sintra Sky Network, dirigido por Gustavo
Facas, neto dum conhecido DJ dos anos 10, e o vereador dos media, Simeon
Pereira, descendia de romenos radicados no Mucifal.
Varela
era dinâmico e audaz. Antigo rapper, eleito através do velho Facebook com 2/3
de “gosto”, tinha projetos para o concelho: a Cidade do Cinema abriria em 2048,
bem como a Universidade Cristiano Ronaldo, em homenagem ao comendador, agora
com mais de 70 anos, proprietário do Praia Grande Hilton e dum resort de luxo
na Pena. No plano desportivo, a fusão de todos os clubes desportivos originara
o Sintra SAD, presidido pelo antigo internacional Nani, que finalmente
disputaria a I Liga.
Com
50% de desempregados, designados pelas estatísticas como inativos orgânicos,
criara um plano de reforma para aqueles que tivessem frequentado ao menos dez
cursos de formação profissional. Mas o principal problema era a violência.
Ganhara as eleições com a promessa de legalizar a violência urbana, desde que
não se ultrapassassem cinco roubos por esticão e três assaltos por ano,
considerados falta leve no cadastro digital. Apesar disso, todas as noites
havia desacatos no metro Oriente-Mem Martins, obrigando à frequente intervenção
da Força Ninja, recrutada entre veteranos da guerra de 2036 contra a Coreia do
Norte, onde Portugal participara integrado no Exército Europeu.
O
telemóvel ligou. Simeon anunciava que o busto do escritor Miguel Real estava
terminado, e pronto para ser inaugurado na Volta do Duche. Contando milhares de
downloads de e-books, era uma referência de Sintra, desde que em 2016 ganhara o
Nobel da Literatura. Ali ficaria, ao lado do Memorial à Grande Hecatombe de
2011, quando Portugal caíra às mãos da troika.
Sobreviventes das únicas duas freguesias de Sintra ali depositavam flores com
frequência, exorcizando esses anos de fome e incerteza, em que 90% da população
perdeu o emprego, e sobreviveu com o apoio humanitário do Ruanda e do Haiti.
Passados
os anos, as coisas mexiam de novo, e com Varela, Sintra voltava a ser cool e
progressiva. A imagem romântica em que se insistira no passado não pegara, e
desde os anos vinte que se apostava nas indústrias criativas de base
tecnológica, e em empresas startup, em
Morelena e Negrais. Os call centers
com videoconferência, os transgénicos de estufa, a par de fábricas de carros a
biodiesel no Cacém, foram a base da retoma nos anos 20. Doces tradicionais como
a queijada ou o travesseiro haviam desaparecido, substituídos por uma versão light sem açúcar e ovos, dentro do plano
de combate à obesidade, que igualmente banira o courato, o hambúrguer e o ice tea, apostara-se no teletrabalho e
na privatização dos serviços: o urbanismo era agora gerido por uma consultora
de Macau, as obras municipais pelo consórcio Pires e Rodil, franchisado duma
empresa de Taiwan, pelo que apenas restavam 70 funcionários em permanência,
ganhando cerca de 300 yuans por mês
(o yuan, antes moeda chinesa, era
agora a moeda mundial, depois do estoiro do euro em 2015, com a intervenção do
FMI na Alemanha). Até a justiça fora privatizada, e entregue por cem anos a uma
holding de magistrados, a Isaltino e Associados, com sede nas ilhas Caimão e
escritório em Lourel, nova sede da comarca.
Após
a reunião com Zibrinski, e sob a sua presidência, finalmente Sintra teria um
Centro Integrado para a Conservação da Vida-CICV, algo antes chamado hospital,
uma empresa de saúde onde os doentes comprariam quarto e assistência em time-share, podendo trespassá-lo, após o
tratamento e prévia liquidação de impostos. O acesso seria permitido após um
chip do genoma confirmar a doença e a situação fiscal do candidato, e seria
gratuito para todos que se houvessem reformado aos 90, e provassem viver em
casa dos pais. Em 2060, finalmente terminaria a revisão do Plano Director,
depois de 70 anos em análise, e a torre biónica da Adraga, com 1000m de altura
e dez pisos de marisqueiras, enfim ficaria pronta. Então sim, o Admirável Mundo
Novo chegaria a Sintra, pelas providenciais mãos de Djaló, e longe ficaria a
memória dos terríveis anos 10, dos acampamentos de desalojados em Campo Raso,
vítimas do furacão Gaspar, que em muito ultrapassara o terramoto de 1755, e da
Grande Hecatombe, geradora da Guerra 2013-2018, entre inspectores das Finanças
e milícias da Resistência.
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