Passeava D. João III nas escarpas da Roca, promontório do Inferno que sempre o atemorizara, quando os relâmpagos sobre o mar aconselharam que recolhesse ao mosteiro, na Penha Longa, onde veraneava uns dias. Quisera o destino que dias antes morresse o infante D. Filipe, seu herdeiro, e de Espanha Francisco Lobo reportasse a morte da irmã, a imperatriz Isabel. Em permanente luto e dado à solidão, sempre que veraneava na Penha Longa, a cavalo percorria a costa ventosa, última fronteira do Reino. Pêro de Alcáçova Carneiro, que acompanhava o rei, com Rodrigo de Castro, aconselhou o regresso, viria chuva e anoitecia. D. João apeou-se e deixou que o vento lhe açoitasse a face, desafiando a zanga do Altíssimo, que despejava a fúria sobre o mar. Pêro benzeu-se, temente a Deus, escutando o som perturbador da Roca, e lembrou o terrível segredo do lugar, que seu pai lhe confessara em tempos do defunto D. Manuel:
-É bom que nos vamos, Majestade, a borrasca está perto, manda o Senhor que respeitemos os seus sinais de desagrado! Da costa devemos guardar distância…
O rei nada disse, sem espírito para argumentos. Assustado, e querendo ir rapidamente embora, o valido despejou medos e temores de tempestades passadas:
-Há quase vinte anos, foi Milão batida por relâmpagos assim, e todos pensaram ser o fim dos seus dias. Caindo um raio sobre a torre da fortaleza, onde se guardavam munições de artilharia, foi tal a destruição que até os alicerces foram arrancados, fazendo saltar as pedras, que despedaçaram pernas e braços. Dos duzentos homens, sobreviveram doze, sendo horrível o espectáculo das pedras lançadas a mais de quinhentos pés, vinte bois não as teriam conseguido levantar. Devemos temer, em dias como este!
Carneiro exagerava, com pressa em partir, divertido com o temor do secretário, o rei deteve-se à chuva. Lá em baixo, numa nesga de areia, peixes saltitavam assustados. Carneiro cerrou o fácies, qual arauto do fim do mundo, e continuou a arenga:
-E também em Brabante, no sétimo de Agosto de 1527, um trovão abalou Malines, de tal modo que todos pensaram ter a cidade sido engolida pelas entranhas da terra, deixando um insuportável cheiro a enxofre!
D. João mandou calar o fidalgo, mas este continuou a colorir de horror a narrativa, com o desejo de escapulir para a Penha Longa. D. João, porém, achou que não confessava o que o preocupava:
-No tempo do templo de Hánon, na Líbia, Satanás fazia-se adorar em forma de bode,e juntou ali uma infinidade de tesouros - continuou. Porém, quando o rei Cambises da Pérsia enviou um exército para pilhar o templo, o chifrudo encheu o céu de turbilhões, trovoadas e trovões, matando cinquenta mil homens, sufocados e queimados. Há que temer quando ele ronda as escarpas, Majestade!
Rodrigo de Castro, segurando a montada, reforçou os temores de Pêro de Alcáçova Carneiro:
-Melhor seria que fossemos, sim. Não há muitos dias, houve notícias de um clarão na catedral de Siena ,quando o Santo Padre aí rezava missa, a todos deixando em pânico. A Deus o que é de Deus, Senhor! –rematou o fidalgo, benzendo-se.
El-Rei anuiu, e debaixo de chuva intensa tomaram a estrada da Penha Longa, o mar estava roxo e as ondas ameaçadoras. Já afastados, na praia, entre peixes voadores, uma besta desperta do sono com corpo de morcego apareceu à entrada duma gruta, tinha a cabeça coberta de escamas achatadas e umas asas descomunais. Diabólico, tinha por prodígio dominar os peixes, e instruí-los no afundamento dos navios que lhe invadissem os domínios. Poucos o haviam avistado, o fel que expelia sobre os incautos pescadores logo os cegava e deixava inférteis. Âncora ou arma, corda ou máquina, jamais puderam contra o monstro da Roca. Tendo dois dedos apenas, e escamas cobrindo as pernas, há muito tecia o destino dos mares, já Plínio descrevera a Tibério a existência na Ibéria desse monstro, que em noites de tempestade espalhava um canto lancinante, soprando por uma enorme concha e semeando catástrofes nos mares atlânticos.
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