domingo, 24 de abril de 2022

Onde eu estava no 25 de Abril



Naquela quinta-feira não houve aulas e o ponto de Física ficou adiado por causa duns militares que ocuparam o Terreiro do Paço, o meu avô telefonou logo de manhã a aconselhar que não saíssemos de casa, chuviscava e o dia estava cinzento. Na televisão, passaram um episódio repetido do Daktari, contente por não haver aulas, aproveitei e fui ao barbeiro, onde corriam boatos desencontrados sobre o sucedido, um dia sem aulas era sempre uma festa.

 

No dia seguinte o D.Pedro V, liceu de Lisboa onde frequentava o 5º ano (hoje 9º) estava agitado, o porteiro fugira, era informador da PIDE-DGS. No sábado, 27, depois duma avalanche de acontecimentos e debaixo de chuva, subi com os meus pais e irmã ao Carmo, onde os soldados com cravos nas armas e pendurados em blindados tiravam fotos com populares. Tudo acontecera em poucas horas. Lisboa, cinzenta e molhada, exultava de alegria, na estátua do Rossio, uns guedelhudos invetivavam alguns transeuntes apelando à sua prisão, informadores da PIDE, denunciavam, levando à sua detenção por populares acirrados. Com um megafone, Saldanha Sanches, do MRPP, (mais tarde soube quem era) clamava contra os fascistas.

 

Em poucos dias, tudo mudou. O “careca megalítico”, professor de História, até ali sorumbático, mostrava-se agora simpático e adepto da nova situação, opositor silenciado durante anos, rejubilava, mais receoso, o professor de Moral, temia a anarquia. Embriagados pelas notícias da liberdade que de todo o lado choviam, animados por canções de protesto nunca antes escutadas, descobriam-se mundos escondidos, os sons de Zeca, Fanhais, Luís Cília e Adriano, na sala de alunos, manifestos policopiados e jornais de parede em profusão apelavam a RGA’s, a nova vida da escola discutida no dia seguinte.

 

O primeiro plenário do MAEESL- Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário de Lisboa decorreu no ginásio do Liceu D. Pedro V, tendo o reitor, “lacaio” do regime, sido previamente saneado. Apesar de já saber algo de política- o meu avô era opositor de Salazar e antigo apoiante de Norton de Matos e Humberto Delgado, e no 1º de Maio de 1973 foi mesmo agredido no Rossio, por participar numa concentração não autorizada- pela primeira vez ouvi falar de Álvaro Cunhal e Mário Soares, apesar de Spínola ser um nome de quando em quando sussurrado em minha casa ao jantar.

 

No dia do trabalhador, com meus pais subi a Almirante Reis e estive no grande 1º de Maio de 1974. Portugal estava todo ali em festa, marinheiros e anónimos abraçados, o mundo olhando para um esquecido rincão atlântico que desassombrado e agigantando-se fazia a primeira revolução utópica dos tempos modernos.

 

Nas semanas seguintes, o país transfigurou-se, a escola entrou em ebulição, os partidos dividiram as opiniões e os plenários foram ficando organizados, a democracia gatinhou, vendo os jovens tornando-se homens. Nada poderia deter a força indómita da geração da liberdade.

Os anos passaram, e de certo modo, respondemos à chamada do nosso tempo, de sangue na guelra para as causas generosas e razoavelmente exigindo os impossíveis, pois só salvando o mundo nos poderíamos salvar. Salva-se a memória, o orgulho de ter tentado, e a certeza de nunca ter desistido.

Ontem visitei o Quartel do Carmo, onde tudo se passou há 48 anos, e onde estive também depois daquela madrugada seminal, revendo mentalmente os sons da liberdade, a esperança de um povo a quem enfim era permitido sonhar. Atrás de tempo, tempo vem, muitos anos passaram, e valeu a pena, no regresso a casa procurei o Zeca e o Adriano no meu smartphone, e tive a certeza de que haverá sempre a busca de um Abril em quantos, lembrando o Passado, não desistirem de construir o Futuro.



Foto tirada por mim no 1º de Maio de 1974. O senhor de óculos, em baixo, é o meu pai.

Sem comentários:

Enviar um comentário