sexta-feira, 15 de abril de 2022

Defender o Património é...

 


Defender o Património, nos tempos que correm, é mais que nunca um dever cívico, porquanto, ainda que o PRR anuncie amanhãs que brilham, avaras, as verbas continuam incertas, e a eficiência também. Para os militantes dessa causa, este deve, porém, ser um momento de vigília, e de não deixar que a frágil árvore desapareça na floresta densa de dificuldades, cortes e silêncios motivados pela ditadura da dívida, ou abocanhada por um qualquer orçamento.

Defender o Património, é cada vez mais, estimular a cidadania, e as boas práticas; é pugnar pela educação escolar como plataforma para o seu conhecimento e propagação; é descolonizar a memória de imaginários estafados, acolhendo visões de património, que incluam o imaterial e o das vivências, amanhã seguramente tradições; é resgatar a autoestima e o “sentimento de nós”, num tempo de cerrar fileiras, e estimular a identidade que constrói a nossa idiossincrasia e peculiar forma de estar no mundo; é lançar pontes e massa crítica, mediar entre o poder público e as comunidades, num trajeto virtuoso que acentue o pathos de ser português, e sê-lo de modo universalista.

Defender o Património é zelar por restauros regulares, repor a estatuária nos Capuchos, continuar a repensar o estacionamento e a sinalética nos lugares notáveis, pensar global para agir local, devolver vida e criatividade a todos os lugares notáveis.

Defender o Património é estar atento, ser parceiro com a lealdade de criticar, acompanhar as obras e não depois das obras, chamar a agir e interagir, atuar virtuosamente e não como agente de bloqueio ou de egoístas vaidades, atrás de protagonismos ou da negação pela negação.

Defender o Património é revitalizar a Quinta do Relógio e o Hotel Netto, a Quinta D. Diniz e o Rio do Porto, não deixar aboborar a Gandarinhar, repor a desaparecida cúpula do Café Paris, intervir na Peninha, e rever o preço dos bilhetes, instalar indústrias criativas e empresas startup, residências artísticas e artistas sem ser a recibos verdes.

Defender o Património é ser ouvido antes das podas e das plantações, levar os utentes para a gestão das zonas verdes, implementar um Plano Verde proactivo, obviar arborícidios e deixar crescer as espécies endémicas, monitorizar a pegada ecológica e os ecossistemas milenares, ouvir o som da água dos riachos e o coaxar das rãs, o voo dos morcegos e a seiva das araucárias, a frágil beleza das camélias e a portentosa guarda de honra dos plátanos.

Defender o Património é defender o direito ao silêncio dos caminhantes, o cheiro da terra húmida, o pôr do sol na Roca ou o palatal degustar dum travesseiro, dum ramisco ou duma noz dourada de Galamares.

Defender o Património é divulgar e proteger os vestígios arqueológicos, identificar os tholos, proteger as antas, recuperar as fontes de água, classificar, promover classificações novas, e divulgar as mais antigas.

Defender o Património é tocar a rebate no campanário, sangrar a pena revoltada, cavalgar a comunicação com a serenidade das emergências para tranquilidade das consciências, visitar, escrever, protestar, ajudar, ouvir e ser ouvido, passar palavra, dar o murro certeiro e alertar o adversário, que por vezes é a inércia, outras a ignorância, as mais das vezes a incúria ou a miopia.

Defender o Património é vivê-lo, e com ele conviver, como se cada peça, cada cheiro, cada sabor ou recanto, fossem a mais preciosa relíquia deixada pelos nossos avós e que os nossos netos hão-de um dia receber, estranhando primeiro, orgulhando-se depois.

Defender o Património é pugnar pelo valioso presente que resultará da aliança da memória com a autoestima, da singularidade com o talento, da polis com os seus moradores, dos conventos, palácios e moinhos, com a serra, as tapadas ou os lapiás.

Defender o Património é aguarelar os chalés de Raul Lino e o traço de Norte Júnior e Adães Bermudes, a pedra esculpida de José da Fonseca ou a esculpida palavra de Eça, Francisco Costa, M.S.Lourenço ou Gabriela Llansol.

Defender o Património é recordar os que trilharam o caminho, erguendo a tocha dos seres maiores, dos eremitas jerónimos ao senhor da Penha Verde, dos novecentistas bretões aos cavaleiros da finança e aos poetas proscritos, de Fernando, o rei artista, ao Carvalho da Pena, jardineiros de Deus na fértil horta de Klingsor.

Defender o Património é chamar à formatura e honrar o legado de Cardim Ribeiro, Vítor Serrão, João Cachado, Adriana Jones, Francisco Caldeira Cabral, Diogo Lino Pimentel, Gerald Luckurst, Maria Almira Medina, Emma Gilbert, Hermínio Santos, Eugénio Montoito, Pedro Macieira, Emília Reis, Cortêz Fernandes, Fernando Castelo, Teresa Caetano, João Rodil, Inês Ferro, Cruz Alves, Ruy Oliveira, Martins Carneiro, Pedro Flor, Jorge Trigo ou Carlos Manique, entre os muitos que em boa hora renderam Viana da Mota, Mário de Azevedo Gomes, José Alfredo, Joaquim Fontes, Silva Marques, António Medina Júnior, Félix Alves Pereira, Octávio Veiga Ferreira, Dorita Castel-Branco, Milly Possoz, Carlos Viseu, ou Anjos Teixeira, numa lista sempre incompleta e várias vezes anónima.

Defender o Património é poder ver o teatro de Pedro Alves, Rui Mário ou Zé Sabugo, Susana Gaspar e Paulo Cintrão, Gil Matias e Paulo Taful; escutar grupos corais com Miguel Anastácio ou Pedro d’Orey, o Conservatório e os Bombos, ler Miguel Real, Luís Filipe Sarmento ou Raquel Ochoa, apreciar a pintura de Edmundo Cruz, as fotos de Nuno Antunes, ouvir novas sonoridades, reinventando a arte em narrativas dum presente capturado e desbravando patrimónios de afetos.

Defender o Património é fazer prova de vida. Contra alguns, algumas vezes, por todos quase sempre. Por Nós. Fundamentalmente.


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