Naquela
quinta-feira não houve aulas e o ponto de Física ficou adiado por causa
duns militares que ocuparam o Terreiro do Paço, o meu avô telefonou
logo de manhã a aconselhar que não saíssemos de casa, chuviscava e o dia
estava cinzento. Na televisão, passaram um episódio repetido do Daktari,
contente por não haver aulas, aproveitei e fui ao barbeiro, onde
corriam boatos desencontrados sobre o sucedido, um dia sem aulas era
sempre uma festa.
No
dia seguinte o D.Pedro V, liceu de Lisboa onde frequentava o 5º ano
(hoje 9º) estava agitado, o porteiro fugira, era informador da PIDE-DGS.
No sábado, 27, depois duma avalanche de acontecimentos e debaixo de
chuva, subi com os meus pais e irmã ao Carmo, onde os soldados com
cravos nas armas e pendurados em blindados tiravam fotos com populares.
Tudo acontecera em poucas horas. Lisboa, cinzenta e molhada, exultava de
alegria, na estátua do Rossio, uns guedelhudos invetivavam alguns
transeuntes apelando à sua prisão, informadores da PIDE, denunciavam,
levando à sua detenção por populares acirrados. Com um megafone,
Saldanha Sanches, do MRPP, ( mais tarde soube quem era) clamava contra
os fascistas.
Em
poucos dias, tudo mudou. O “careca megalítico”, professor de História,
até ali sorumbático, mostrava-se agora simpático e adepto da nova
situação, opositor silenciado durante anos, rejubilava, mais receoso, o
professor de Moral, temia a anarquia. Embriagados pelas notícias da
liberdade que de todo o lado choviam, animados por canções de protesto
nunca antes escutadas, descobriam-se mundos escondidos, os sons de Zeca,
Fanhais, Luís Cília e Adriano, na sala de alunos, manifestos
policopiados e jornais de parede em profusão apelavam a RGA’s, a nova
vida da escola discutida no dia seguinte.
O
primeiro plenário do MAEESL- Movimento Associativo dos Estudantes do
Ensino Secundário de Lisboa decorreu no ginásio do Liceu D.Pedro V,
tendo o reitor, “lacaio” do regime, sido previamente saneado. Apesar de
já saber algo de política- o meu avô era opositor de Salazar e antigo
apoiante de Norton de Matos e Humberto Delgado, e no 1º de Maio de 1973
foi mesmo agredido no Rossio, por participar numa concentração não
autorizada- pela primeira vez ouvi falar de Álvaro Cunhal e Mário
Soares, apesar de Spínola ser um nome de quando em quando sussurrado em
minha casa ao jantar.
No
dia do trabalhador, com meus pais subi a Almirante Reis e estive no
grande 1º de Maio de 1974. Portugal estava todo ali em festa,
marinheiros e anónimos abraçados, o mundo olhando para um esquecido
rincão atlântico que desassombrado e agigantando-se fazia a primeira
revolução utópica dos tempos modernos.
Nas
semanas seguintes, o país transfigurou-se, a escola entrou em ebulição,
os partidos dividiram as opiniões e os plenários foram ficando
organizados, a democracia gatinhou, vendo os jovens tornando-se homens.
Nada poderia deter a força indómita da geração da liberdade.
Foto tirada por mim no 1º de Maio de 1974. O senhor de óculos, em baixo, é o meu pai.
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