domingo, 12 de maio de 2013

A primeira pedra





24 de Agosto de 1924.O Presidente da República, Teixeira Gomes, chegava a Sintra para o lançamento solene da primeira pedra do novo hospital, junto da cadeia comarcã e da estação ferroviária. Projecto de Pardal Monteiro, preparara-se uma vistosa cerimónia, com ministros, edis, militares com dragonas, enchapeladas damas, o acompanhamento musical seria das Bandas do 1º de Dezembro e dos Bombeiros. Alfredo Pinto cobria o evento para a Semana de Sintra, enquanto O Despertar, órgão do Centro Republicano, era representado pelo seu director, António da Silva Sousa, industrial de mármores das Lameiras. A vila rejubilava com o acertado passo no sentido do progresso, a saúde entraria enfim no mapa dos direitos que uma sociedade civilizada não poderia dispensar.

Presentes Gregório Casimiro Ribeiro e Amílcar Barros Queiróz, do Partido Regional, José Antunes dos Santos, conhecido capitalista e até o dono da Periquita, Júlio Amaro dos Santos. Depois de tocado hino pelas bandas, o Presidente usou da palavra para enaltecer o progresso e aquela aguardada realidade que finalmente avançava. Antes do final da década, Sintra emparceiraria com Lisboa e outras cidades civilizadas, os doentes seriam curados, as mães seriam assistidas no parto, Sintra poderia crescer com confiança no futuro, que por tal a República zelaria. Muito aplaudido, discursou também o presidente da Câmara, para gáudio dos caciques locais, depois dos paços do concelho e da cadeia comarcã, um moderno hospital  nasceria na vila.

Depois dos discursos e da primeira pedra, solenemente se lavrou auto do acontecimento, e dele se extraiu cópia, que o presidente Teixeira Gomes depositou debaixo da pedra, num recipiente de vidro, testemunhando para a eternidade o momento em que enfim Sintra ia ter um hospital.

Amaro dos Santos, o dono da Periquita, aplaudiu, comentando com Antunes dos Santos:

-Sim senhor, assim sim, já não vai ser preciso ir para S. José ou para o Desterro. Já cá fazia falta há muito tempo! Olhe, se já estivesse construído no tempo da gripe espanhola, se calhar muita gente tinha escapado!

-Esperemos que sim, caro Júlio, ainda se morre muito, daqui a Lisboa são quatro horas, e Sintra não pode curar os doentes a caldos de carneiro e panos de água quente. Esperemos que sim! -pouco convencido, o cacique aplaudia também, seria bom para os negócios, igualmente.

As obras estavam apalavradas, o Governo cativara verbas, no Verão se faria um cortejo de oferendas para ajudar a equipá-lo, tudo do mais moderno, com internato, maternidade, dispensário e cirurgia. Não tivessem os sintrenses medo de estar doentes, que tudo estaria preparado.

Como muita coisa em Portugal, a República soçobrou, o projecto do hospital foi abandonado e nem um só tijolo foi erguido, tal como o mirífico teleférico que levaria turistas à Pena.

Em finais de 2010, um piquete dos SMAS procedia à reparação de uma conduta no estacionamento fronteiro à estação quando um recipiente de vidro, ainda intacto, veio enrolado na escavadora. Detritos, pensou o engenheiro da obra. A um olhar mais atento, verificou-se que dentro continha um documento, com lacre e fita vermelha. Surpreendentemente, ali se atestava às gerações vindouras o dia em que Sintra, pela mão do mais alto magistrado da nação, lançara pontes para o futuro das suas gentes, só uma nação sã podia ser progressiva, escrevia-se, prometendo-se rápido regresso para a inauguração.

O engenheiro levou aquilo ao director, que encaminhou para o Arquivo Histórico, onde o doutor Montoito examinou o manuscrito, havia que lhe dar tratamento adequado.

Os anos passaram, os regimes também, do novo hospital nem um tijolo, e hoje nem um só bebé nasce em Sintra, cegonhas  vindas de Paris sobrevoam a Pena, mas com destino a outras paragens. A pedra e o recipiente solenemente enterrados em 1924 deixaram de ser prioridade para os vivos, o recipiente, esse, será por certo atracção para os arqueólogos, que qual Graal redentor, até pensem ter um dia havido um hospital em Sintra, na Rua das Murtas, e que como muito património desaparecido tenha sido engolido na voragem urbanizadora.

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