quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A retirada do Velho Leão



Para ele era o fim, cansado de tricas e jogadas. Quarenta anos depois de ter tocado a rebate os sinos contra o Conde de Sucena, quando este quis murar Seteais, jardim  do povo desde 1800, e  duma vida esgrimindo contra tiranetes de aldeia, José Alfredo Costa Azevedo, velho leão a quem Abril fez autarca, batia com a porta.

Presidente desde 1974, depois da alegria da liberdade, ele, que durante anos por ela lutara contra o homem de Santa Comba, escriba enterrado em papéis amarelados, após reformar-se do tribunal, fartou-se de facadas, desiludido com os novos tempos. Assinou a demissão, sem hesitar, e saiu a pé pela Volta do Duche- graças a ele voltara a ser Volta do Duche- direito à Vila Velha,  onde nascera, por cima da Periquita. Ao caminhar, naquela tarde fresca e cacimbada, recordou saudoso o seu velho  Mestre Alonso, o Norte Júnior, o Leal da Câmara, com os seus humores. Lá estavam todos, já, com eles se iniciara nos óleos e pincéis, refrescante pausa no árido trabalho de escrivão. O tempo para ele começava a escassear, e tinha outras coisas mais interessantes para fazer. Zé da Vila, para os leitores do Jornal de Sintra, recordava os tempos duros da campanha de Norton de Matos, a luta contra o "Botas", os anos dedicados à Sociedade União Sintrense, casa onde fizera de tudo, de varredor a director, e de actor a tesoureiro. Onde entrava o Zé Alfredo, as coisas andavam, a bem ou a mal.

Assinada a demissão, que mandou levar por mão própria, partiu aliviado. A Câmara dera-lhe carro e motorista, mas não era pássaro a quem se pudesse engaiolar. Passando a curva, à vista do busto sereno do dr. Gregório de Almeida, frente ao Parque da Liberdade, deteve-se um pouco, comovido. José Alfredo fora iniciado nos anos trinta, na Loja Cândido dos Reis, com o nome de António Oliveira, com Gregório de Almeida como Venerável, frequentara a loja Luz do Sol, na R. Alfredo Costa. Há muito o médico dos pobres partira já para a terra da verdade, gente de outra fibra, suspirou. Chegado à Vila, sem apressar o passo, cruzou-se com o Francisco Costa, que vinha do Arquivo, no Valenças. Saudado o amigo efusivamente, Zé Alfredo deu-lhe a notícia, em primeira mão: fartara-se da Comissão Administrativa, o Cortês Pinto que completasse o que faltava do mandato, ainda. Para ele, eram todos lacraus às turras. Até pela homenagem a D.Fernando II no Ramalhão, acto mais que justo à memória do velho rei, lhe infernizaram a vida, a ele, republicano, suspeito de derivas monárquicas por parte de alguns "camaradas" mais irrequietos da vereação. Francisco Costa entristeceu-se, mas compreendeu o amigo. Homens de valores, a política era para eles uma luta por ideais, e não por benesses. Zé Alfredo desabafou, irritado:

-Isto está outra vez como na I República, e ainda vai acabar mal, Chico. As sessões de Câmara estavam a ficar um inferno, para mim chega, eles que se entendam com a cobóiada. No outro dia foi o assalto às Finanças, quando levaram os três mil contos, aos miúdos do judo deu-lhes para ocupar o Sintra-Cinema, julgam que isto é a Revolução de Outubro…

-E tu não queres ser o Kerensky de Sintra, não é, meu caro? Como te compreendo…-sorriu o Francisco Costa.

-Além de que está tudo a aumentar: o bacalhau já vai em trinta escudos o quilo, o pão, o azeite. Mas um ministro já  ganha trinta e cinco contos. Afinal, falávamos dos outros, nem dois anos passaram do 25 de Abril, e é o que se vê!

-Então e agora, o que tencionas fazer? -sondou o poeta, querendo saber mais.

-Ler, escrever, pintar, olha, vou para Gigarós, tratar dos meus gatos. Para começar, amanhã vou a Almoçageme ver a peça dos rapazes do Pérola da Adraga. “A Pérola das Sogras”., acho que é o nome. São levados da breca, os cachopos! E depois, logo se verá, tenho a minha papelada para me entreter...

Chegados ao Terreiro D. Amélia,  velhos amigos vieram saudar o Zé da Vila, compincha de muitas horas e presidente de porta sempre aberta, mal sabendo que acabara de se demitir. Em Abril daquele 1976 haveria eleições para a nova Assembleia da República, era outra fase, posto o endiabrado PREC, para ele, rato de biblioteca, só escrevendo e pintando se sentia bem.

Recebida essa noite ainda a notícia da demissão, a cansaço foi atribuída, unânimes, todos nos dias seguintes elogiaram o Velho Leão e a sua devoção a Sintra e à jovem democracia portuguesa, do Lacerda Tavares ao Lino Paulo. Do retiro de Gigarós, com distância, mas mordaz e atento, continuaria a chamar os bois pelos nomes até morrer, anos mais tarde, cumprida a Missão e sorrindo  à Luz do Sol.

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