Passem os regimes, governos e administrações públicas que passem, um dos defeitos congénitos do pathos nacional é o culto da burocracia. Se se tem de legislar, criam-se logo intermináveis portarias e regulamentos, certidões e atestados, fotocópias e pedidos de licença, sinal da pouca confiança no utente e por vezes sintoma dum tique autoritário que tanto pode ser o de quem dirige como muitas vezes a prova de vida do mais modesto colaborador. Há sempre o porteiro cioso da sua porta onde até um ministro tem de pedir para passar, o burocrata desesperado por encontrar uma deficiência para ufanamente pedir mais um papel, o fiscal revistando o processo para poder multar por cinco centímetros de afastamento ou falta duma coleção de cópias que na prática de nada servem senão para engrossar o processo, infernizar o utente e mostrar zelo perante o chefe.
É a herança do modelo napoleónico e
centralista, do Estado-Carrasco em vez do Estado-Amigo, tudo em nome da “legalidade”,
e do “rigor” se bem que ao mesmo Estado não pareça dever ter os administrados
como utentes mas mais como vassalos do papel e da certidão. E, se os tempos
modernos permitem o uso de plataformas digitais expectavelmente aceleradoras da
análise e da decisão, ainda estamos a anos luz da simplificação.
O Estado pouco faz e pouco deixa fazer, e
ainda se arroga o direito de sancionar quem faz e aposta. E raramente dá o
exemplo: se para o utente o prazo é peremptório e a falta de resposta conduz ao
arquivamento, para os serviços pressa não consta do dicionário, que o respeito
é muito bonito, e se avançar sem o abençoado papelinho lá estará o embargo
correctivo, a contraordenação castigadora, o auto sacramental. E ainda que o
discurso dominante seja o da simplificação, há nos genes do funcionário o
sentimento de orfandade sempre que um assunto se resolve à primeira. Ainda um destes dias num serviço público uma
senhora com tantos anos como a secretária de madeira que a viu envelhecer se
regozijava por um processo ter demorado “apenas” quatro meses, “rápido” na sua
escala de prioridades.
Muito se tem feito, é certo, no sentido de
colocar a Administração próxima dos seus “clientes”, mas muito há ainda a
fazer. É precisa uma descolonização mental séria e uma cultura de procedimento
nova, rapidez com quem quer investir e aproveitar o “momentum”, rapidez com
quem precisa de uma cirurgia e não pode esperar meses a fio, rapidez com quem
quer construir a sua casa e vê o tempo e o dinheiro esvaídos em projectos,
cópias e certidões que apenas servem para arquivar após facturar a bendita
taxa. É tendo esse objectivo como prioritário que poderemos avançar, sem leis
obtusas e semânticas que se invocam para obstaculizar ou atavios mentais do tempo
das mangas de alpaca a bem da Nação.
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