segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Noite de Natal na linha de Sintra




A farmácia estaria de serviço na noite de Natal, a Mafalda asseguraria o expediente. O comboio para Sintra estava a chegar e Eduardo só pensava em chegar a casa, onde Sónia esperava para um jantar tranquilo, a dois.

Cinco anos na farmácia no Cacém, de tudo vira já. A farmácia era um espelho: os unguentos para o reumático da D.Marinela, sempre a aviar receitas e reclamando das artroses, os Gurosan para a fauna da noite, malandreca e ressacada, o antibiótico do Gonçalo, com o pai desempregado e a mãe a dias num infantário, a comparticipação cada vez mais pequena. O pior, eram as noites. O Cacém cada vez mais perigoso, perdido entre seringas da crise, nada como uma farmácia para perceber o mau estar geral.

Levou consigo para casa uma mala com amostras que o delegado de informação médica deixara, no dia seguinte, feriado, entreter-se-ia a folhear a literatura, os laboratórios estavam sempre a inventar produtos, todos produzindo quase o mesmo efeito afinal, a indústria precisava de ser oleada e criar produtos novos, bem vira o que sucedera quando da gripe A.

A viagem seria curta, cerca de dez minutos, já pouca gente ia no comboio, quase todos recolhidos às suas ceias e familias. Na carruagem, alguns passageiros apenas, um careca amorfo, com o olhar baço reflectido no vidro grafitado, duas brasileiras de roupa exuberante a caminho do trabalho, pelo cheiro do perfume barato, um jovem de óculos com um portátil, falando com amigos pelo Facebook. A carruagem seguia silenciosa, intervalada por uma voz melosa indicando a paragem seguinte, até que soava doce a palavra Algueirão naquela voz de aeroporto, quem não conhecesse poderia pensar-se em Paris ou Barcelona.

Em Rio de Mouro saiu o careca, levando uma maleta, a marmita do almoço por certo, o Natal seria a dormir, sem disposição para festejos, mais um ano numa vidinha que não vai, antes vai indo. Duma carruagem contígua, chegaram quatro jovens africanos, com piercings reluzentes como árvore de Natal, boné da NBA e ténis reflectores. Depois de ruidosos pontapés nas cadeiras, marcando o território, e do abrir e fechar de portas, invasivas e invasoras, um, com as calças quase pelos joelhos, aproximou-se de Jorge e apontou-lhe uma faca à jugular:

-Meu, passa para cá o caroço, e depressa! E não te chibes, que ainda é pior!

Eduardo sentiu a lâmina fria na garganta, as brasileiras, surpresas, nada disseram, que nestas coisas o melhor é ficar de fora, indocumentadas por certo. Buscou no bolso das calças a carteira com trinta euros, apenas, o cartão multibanco e cartões-de-visita de delegados de informação médica.

-Só isto, sócio? Então hoje não há festa? -pelos vistos teriam de ir abordar o caixa de óculos, que fazia não ser nada com ele. Eduardo achou melhor ficar calado. Eram quatro, um sacou os trinta euros enquanto o da faca o manteve quieto, não fosse pegar no telemóvel e chamar a polícia, depressa desapareceriam na noite a beber cervejas e enrolar um charro. Junto à porta, um dos sócios, para aí com dezoito anos, subitamente empalideceu, e caiu desamparado no chão da carruagem. Surpresos, os outros começaram a desatinar:

-Levanta-te chavalo, estás bezano, meu? -sacudiram-no os outros, como baratas tontas, sem saber o que fazer. As brasileiras entreolhavam-se, parecia coisa do morro.

-O minino bébeu? Nossa, que barra pesada! -comentou uma, sem se levantar, um decote pronunciado deixava descobertos uns peitos rijos e salientes. Eduardo virou-se para o seu sequestrador e interpelou-o:

-Oiçam, eu sou farmacêutico, percebo um pouco destas coisas, deixem-me tirar-lhe a pulsação -sugeriu, apesar da situação, era um profissional.

O da faca, com um capuz enfiado, hesitou, mas anuiu, desviando a lâmina, o rapaz do computador aproveitando a trégua inesperada, chegou-se, curioso, enquanto o Algueirão ficava para trás sem ninguém aí ter saído, Eduardo, tomando conta da situação,  colocou o aparelho no braço do jovem:

-É quebra de tensão. Oiçam, trago aqui amostras duns comprimidos novos que estimulam o organismo, isto deve ajudar -diagnosticou, abrindo a mala das amostras que levava para ler no feriado. Abrindo-lhe a boca, ante a passividade dos amigos, enfiou-lhe uma cápsula branca, e cinco minutos depois, sentado num banco da carruagem já o jovem, Vando, era o seu nome, recuperava, com dor de cabeça e ar assustado.

-O melhor é fazeres umas análises, pode ser algo do coração, ainda és novo, puto! -recomendou Eduardo. Apesar de assaltado, não resistiu a pôr a mão no ombro do rapaz, complacente com aquelas vidas perdidas, talvez nunca programadas para ser de outra forma. Acabrunhado, Vando nada disse, os outros, em silêncio, rodeavam-no. O da navalha olhou Eduardo nos olhos e com um ar fechado e inexpressivo, estendeu-lhe a mão onde ainda tinha os trinta euros do assalto. Eduardo olhou-os de relance, e sem aceitar, despediu-se, conformado:

-Bebam um copo à minha saúde! Feliz Natal!

E saiu na Portela de Sintra, as brasileiras também, entrando num carro que as esperava, também o moço do computador sumiu na noite fria. Em breve seria Natal, também no cúmplice comboio de rejeições. Os quatro sócios seguiram para a vila, deambulando no largo junto ao paço, com o Vando agora mais descontraído. Metendo a mão ao bolso, encontrou a caixa dos comprimidos, e na frente, escrito a azul, um “Feliz Natalem letras  salientes.

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