quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Carta Aberta ao Venerando Chefe de Estado


Carta Aberta ao venerando Chefe do Estado a que isto chegou
Senhor Presidente
Há muito muito tempo, nos dias depois que Abril floriu e a Europa se abriu de par em par, foi V.Exa por mandato popular encarregue de nos fazer fruir dessa Europa do Mercado Comum, clube dos ricos a que iludidos aderimos, fiados no dinheiro fácil do FEDER, do FEOGA, das ajudas de coesão e mais liberalidades que, pouco acostumados,  aceitámos de olhar reluzente, estranhando como fácil e rápido era passar de rincão estagnado e órfão do Império para a mesa dos poderosos, que, qual varinha mágica, nos multiplicariam as estradas, aumentariam os direitos, facilitariam o crédito e conduziriam ao até aí inatingível Olimpo do mundo desenvolvido. Havia pequenos senãos: arrancar vinhas, abater barcos, não empatar quem produzisse tomate em Itália, ou conservas em Marrocos, coisa pouca e necessária, por via da previdente PAC. Mas, estando o cheque passado e com cobertura, de inauguração em inauguração, o país antes incrédulo, crescia, dava formação a jovens, animava a construção civil , os resorts de Punta Cana e os carros topo de gama. Do alto do púlpito que fora do velho Botas, V.Exa passaria à História como o Modernizador, campeão do empreendedorismo, símbolo da devoção à causa pública e estóico servidor do povo a partir da marquise esconsa da casa da Rua do Possôlo. Era o aplicado aluno de Bruxelas, o exemplo a seguir no Mediterrâneo, o desbravador do progresso, com o mapa do ACP permanentemente desactualizado. O tecido empresarial crescia, com pés de barro e frágeis sapatas, mas que interessava, havia  pão e circo, CCB e Expo, pontes e viadutos, Fundo Social Europeu e tudo o que mais se quisesse imaginar, à sombra de oásis  de leite e mel,  Continentes, Amoreiras, e catedrais escancaradas à distância de um simples cartão Visa.
Ao fim de dez anos, um pouco mais que o Criador ao fim de sete, vendo a Obra pronta, V.Exa descansou, e retirou-se. Tentou Belém, mas ingrato, o povo condenou-o a anos no deserto, enquanto aprendizes prosseguiam a sanha fontista erguida atrás dos cantos de sereia, apelando ao esbanjamento e luxúria.
No início do novo século, preocupantes sinais do Purgatório indicaram fragilidades na Obra, mas,  jorrando fundos e verbas, coisa de medrosos se lhe chamou. À porta estava o novo bezerro de ouro, o euro, a moeda dos fortes, e fortes agora, com ela seguiríamos, poderosos, iguais. Do retiro tranquilo, à sombra da modesta reforma de servidor do Estado, livros e lôas emulando as virtudes do  filão foram por V.Exa endossados , sob o euro sem nódoa, moeda de fortes e milagroso caminho para o glorioso seio da Europa. Migalha a migalha, bitaite a bitaite, foi V.Exa pacientemente cozendo o seu novelo, até que, uma bela manhã de nevoeiro, do púlpito do CCB, filho da dilecta obra, anunciou aos atarantados povos estar de volta e pronto a servir. Não que as gentes o merecessem, mas o país reclamava seriedade, contenção, morgados do Algarve em vez de ostras socialistas. Seria o supremo trono agora, com os guisados da Maria e o apoio de esforçados amigos que, fruto de muito suor e trabalho, haviam entretanto vingado no exigente mundo dos negócios, em prol do progresso e do desenvolvimento do país.
Salivando o povo à passagem do Mestre, qual Lázaro regressado dos mortos, sem escolhos o conduziram a Belém, onde petiscando umas pataniscas e bolo-rei sem fava, presidiria, qual reitor, às traquinices  dos pupilos, por veladas e paternais  palavras ameaçando réguadas, ou castigos contra a parede. E, não contentes, o repetiram segunda vez, e V. Exa, com pungente sacrifício, lá continuou aquilíneo cônsul da república, perorando homilias nos dias da pátria, e avisando ameaçador contra os perigos e tormentas que os irrequietos alunos não logravam conter. Que  preciso era voltar à terra e ao arado, à faina e à vindima, vaticinou V.Exa, coveiro das hortas e traineiras; que chegava de obras faraónicas, alertou, faraó de Boliqueime, e campeão do betão;  que chegava de sacrifícios, estando uns ao leme, para logo aconselhar conformismo e paciência mal mudou o piloto.
Eremita das fragas, paroquial chefe de família, personagem de Camilo e Agustina, desprezando os políticos profissionais, mas esquecendo que é o profissional da política há mais anos no poder, preside hoje V.Exa a um país ingrato, que, em vinte anos, qual bruxedo ou mau olhado, lhe destruiu a obra feita, e como vil criatura que desperta do covil, se virou contra o criador, hoje pálida esfinge, arrastando-se entre a solidão de Belém e prosaicas cerimónias com bombeiros e ranchos folclóricos.
Trinta anos leva em cena a peça de V.Exa no palco da política, com grandes enchentes no início, e grupos arregimentados e idosos na actualidade. 
Mas, chegando ao fim o terceiro acto, longe da epopeia em que o Bem vence o Mal, e todos ficam felizes para sempre, tema V.Exa pelo juízo da História, que, caridosa, talvez em duas linhas de rodapé recorde um fugaz Aníbal, amante de bolo-rei e desconhecedor dos Lusíadas, que durante uns anos pairou como Midas multiplicador, e hoje mais não é que um aflito Hamlet nas muralhas de Elsinore, transformado que foi o ouro do bezerro em serradura e  sobrevivendo pusilânime como cinzento Chefe do Estado a que isto chegou, não obstante a convicção, que acredito tenha, de ter feito o seu melhor.
Respeitoso e Suburbano,  devidamente autorizado pela Sacrossanta Troika
Um Cidadão na Multidão

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