segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Socorro, vem aí o Futuro!

Foto: Obra de Ai Wei Wei, exposta na Cordoaria Nacional sob o tema "Rapture"

No retomar regular deste blogue, com 10 anos e momentos mais regulares que os da intermitência que agora se pretende ultrapassar, escolhi como tema o futuro.

 

Frequentemente, numa visão positivista da História e atenta a tentação para sermos educadamente otimistas (um otimista é um pessimista distraído) achamos que está subjacente ao futuro uma gradativa melhoria material e moral das pessoas e das sociedades, a erradicação das doenças, a resolução dos conflitos, o homem de Platão finalmente vendo a luz na caverna, num processo civilizacional sem retorno e francamente melhor que o passado, de clivagens, usura do poder, infelicidade e sofrimento. E fica bem ter saudades do futuro, desafiadores e modernos, de mentes arejadas e altruístas.

 

Hoje não tenho tanto a certeza de ter pressa desse futuro. Um futuro sem o pão quente e fresco da manhã e sem cheiro a vida e a natureza, asséptico e normalizado pelas ASAE desta vida; um futuro de hipercomunicação  virtual cada vez mais solitários e deprimidos, em silêncio mandando frenéticos SMS uns aos outros a enganar a solidão; um futuro onde os velhos serão convenientemente depositados em armazéns a que se chamam lares e onde esporadicamente esbateremos o remorso em fugazes visitas; um futuro sem partilha que não seja a de ficheiros da net ou do Facebook, ou a fazer patetices no Tik Tok; um  futuro com mais órgãos para transplante e menos almas para transplantar; um futuro sem as coisas boas da vida, da mesa e da floresta, herméticas e com código de barras, transgénicas e clonadas; um futuro anormalmente normalizado, de Verbo coartado pela Verba, de cidadãos sem cidades, pessoas solitárias não solidárias, de erráticos rebeldes confundindo felicidade com euforia, orgasmo com masturbação, solidariedade com caridade e patriotismo com o hino em jogo da seleção. Desse futuro, não tenho saudades, e, meus amigos, se não for para ajudar a construir outro, deixem-me no limbo, construindo outro futuro nos meus poucos palmos de terra e milhões de hectares de imaginação. Aí, previsíveis, as araucárias acrescentarão novas folhas em cada ano, as andorinhas voltarão em março e enquanto não forem desaparecendo na voragem dos dias de chumbo, os meus cúmplices lá irão aparecendo para a escatológica e salvífica imperial das seis.

 

Apetece repetir o slogan a sépia que nos trouxe até aqui: sejamos razoáveis, exijamos o impossível.

Sem comentários:

Enviar um comentário