Foto: Obra de Ai Wei Wei, exposta na Cordoaria Nacional sob o tema "Rapture"
No retomar regular deste blogue, com
10 anos e momentos mais regulares que os da intermitência que agora se pretende
ultrapassar, escolhi como tema o futuro.
Frequentemente, numa visão
positivista da História e atenta a tentação para sermos educadamente otimistas
(um otimista é um pessimista distraído) achamos que está subjacente ao futuro
uma gradativa melhoria material e moral das pessoas e das sociedades, a
erradicação das doenças, a resolução dos conflitos, o homem de Platão
finalmente vendo a luz na caverna, num processo civilizacional sem retorno e
francamente melhor que o passado, de clivagens, usura do poder, infelicidade e
sofrimento. E fica bem ter saudades do futuro, desafiadores e modernos, de
mentes arejadas e altruístas.
Hoje não tenho tanto a certeza de ter
pressa desse futuro. Um futuro sem o pão quente e fresco da manhã e sem cheiro
a vida e a natureza, asséptico e normalizado pelas ASAE desta vida; um futuro
de hipercomunicação virtual cada vez
mais solitários e deprimidos, em silêncio mandando frenéticos SMS uns aos
outros a enganar a solidão; um futuro onde os velhos serão convenientemente
depositados em armazéns a que se chamam lares e onde esporadicamente
esbateremos o remorso em fugazes visitas; um futuro sem partilha que não seja a
de ficheiros da net ou do Facebook, ou a fazer patetices no Tik Tok; um futuro com mais órgãos para transplante e menos
almas para transplantar; um futuro sem as coisas boas da vida, da mesa e da
floresta, herméticas e com código de barras, transgénicas e clonadas; um futuro
anormalmente normalizado, de Verbo coartado pela Verba, de cidadãos sem
cidades, pessoas solitárias não solidárias, de erráticos rebeldes confundindo
felicidade com euforia, orgasmo com masturbação, solidariedade com caridade e
patriotismo com o hino em jogo da seleção. Desse futuro, não tenho saudades, e,
meus amigos, se não for para ajudar a construir outro, deixem-me no limbo,
construindo outro futuro nos meus poucos palmos de terra e milhões de hectares
de imaginação. Aí, previsíveis, as araucárias acrescentarão novas folhas em
cada ano, as andorinhas voltarão em março e enquanto não forem desaparecendo na
voragem dos dias de chumbo, os meus cúmplices lá irão aparecendo para a
escatológica e salvífica imperial das seis.
Apetece repetir o slogan a sépia que
nos trouxe até aqui: sejamos razoáveis, exijamos o impossível.
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