Decorreu no Centro Cultural Olga
Cadaval a 17 de dezembro um pouco habitual espetáculo que, mais que convocar
sentidos e emoções, reuniu o que de melhor Sintra tem e por vezes ignoramos e
desvalorizamos, a pretexto da celebração dos 25 anos da Paisagem Cultural de
Sintra.
Escancarando as portas tortuosas da pandemia, viveu-se na brumosa noite de Sintra um virtuoso momento de união e criatividade despoletado pelos protagonistas da dispersa comunidade cultural, em boa hora
congregados para viver e pensar esta nossa terra de equívocos e contrastes.
Como na lenda, em que dois irmãos se digladiam pela mesma mulher, tombando por
um amor aziago, também no palco de luz e sombras várias Sintras irmãs se
contemplaram, gémeas, mas distantes, sangrando, mas condenadas a estar juntas.
É a Sintra do onirismo militante, com a serra ao lado, milenar guardiã e larvar
berço de lendas e histórias, de mouros e cristãos, visionários reis e
viajantes, aristocratas e feiticeiros, espantados com o renovado verde, em
presépio aninhando casas, palácios, fontes e miradouros. E aquela outra ondem batem ritmos
e matizes, surpresas e ilusões, alunos para a escola e funcionários para o
serviço, senhoras para as compras e reformados para o jardim, agrilhoados
contribuintes a pagar o dízimo ou utentes contando cêntimos para pagar a água, sitiada nos bairros disfuncionais, depósitos de vidas por viver, ao sonolento som do comboio pendular, das ruas sujas e das raivas
contidas.
Pelo Olga Cadaval desfilou o difuso
imaginário dum Éden terreal, frio no inverno e cacimbado no verão, poetizado
pela subtileza poética da encenação de Paulo Cintrão e Rui Mário, dos últimos
guardiões e druidas desta Sintra que teimamos em venerar e que, muitas vezes
destruímos, como os dois irmãos que só puderam viver morrendo.
Utópico altar de poetas, lusitano
reino dum palpável Parnasso, pelo palco sedento de Sintra se respirou a vontade de a redescobrir, rodopiando os atores como Prometeu
na caverna buscando a luz da caverna impossível, mas logo ali ao lado, afinal, com as
suas contradições e verdades.
Apurados os sentidos, sem os ver, alojados no camarote do Tempo, vimos e imaginámos fantasmagóricos castelos, catalépticas condessas, festas e bodos populares, à sombra
da Lua argêntea, hoje de novo assolados por ameaças pestilentas.
Foi bom ver e sentir o exército de Sintra, sentinelas fazendo cultura, em generosidade se entregando
ao público, no fundo, construindo Cidade e dando sinal de maioridade e de entrega. Sintra precisa dos seus artistas, de quem a sente e pressente, e bem
irão os poderes se não perderem de vista este importante ativo, muitas vezes na
intermitência de sobreviver, mas senhores do elixir mágico que nos liberta da
modorra e recorda como é bom poder guardar e viver este legado secular. Uma
noite redentora, pois, não só a repetir, mas a perpetuar.
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