Setembro:
As folhas amarelecem ameaçando cair, como autómatos, clientes
entram e saem das compras, sacos cada vez mais leves, rostos
fechados, a esperança sumindo-se no lado esquerdo da alma. É o país
do fado, na mão de fadistas estafados, charlatães vendedores de
banha da cobra, exasperando no IC-19, desesperando no Centro de
Emprego, aflitos clamando por um ansiado milagre ao fim do
segundo acto, que obvie um terceiro de morte sem
glória. E as segundas iguais às sextas, a meia de leite da manhã,
os jornais com as manchetes da crise, os golos marcados e os
penalties roubados, a necrologia, a ver quem deixou de fumar. E mais
um corte, um despedimento, o regresso das greves, a brigada do
reumático do Conselho de Estado, os comentadores na sua bolha A
culpa é da Europa, ou da guerra, salivam especialistas em
generalidades. É estrutural, alvitram ex-ministros com reformas
douradas, piedoso com os pobres. No jardim, putos rasgam os ares
com acrobacias de skate,
adultos sem skate derrapam
nas esquinas da vida, hoje mera vidinha anémica e perigosa. Lê-se a
opinião publicada para se ter opinião, há culpados, e os culpados
são “eles”. “Eles”. Sacrossanta casta e tríade do nosso
descontentamento, “eles” roubam, conspiram, tiram partido,
servem-se. “Eles” são o corpo alienígena, possuídos
mutantes e criaturas esfaimadas, vingativas e esquálidas,
adamastores de gravata, cruéis justiceiros de pecados por
expiar.
Setembro
levou praia e devolveu cidade. Asfixiante. Com coisas demais para
dinheiro de menos, greves a mais para aulas, cirurgias e tribunais a
menos, crise demais para esperança de menos. Nas notícias desfila a
galeria de horrores chegados e a chegar, de Kiev, do BCE, de
Bruxelas, Belém ou S. Bento, ao longe uma valsa lenta duma velha
senhora aflita a contar os trocos com as roupas estafadas de outrora,
as promessas dum amanhã glorioso levadas numa noite de Acqua
Matrix nos
oníricos dias da Expo, promessa e ensaio para os amanhãs dourados
que não chegaram. Assim és hoje, Portugal, velha corista
de lantejoulas estafadas e sem dinheiro para o asilo, apagadas
que foram as luzes da ribalta.
A
cigana romena pede esmola, trespassado que foi o lugar a um mendigo
reformado, morto de cirrose ou solidão, doente de desespero,
sem lugar a cuidados intensivos. Alheios, miúdos atafulham-se
em pizzas e
cola, amanhã serão mais visualizações no Tik Tok, talvez
um casting para
um reality
show e
o Céu durante 15 minutos. Pontuais,velhos de todos os Restelos
ocupam os bancos de jardim, no areópago do povo, esconjurando tudo,
e sobretudo o tempo, cavalgando o chamamento populista. O tempo que
não conta com eles e onde se limitam a passar o tempo, no tempo
deles é que era…
Noutro
Setembro tombaram torres, e, desafiadores bispos fizeram xeque ao
rei. Não caiu, que peões e cavalos tomaram o tabuleiro, mas
as regras mudaram, e Setembro mudou. À vindima das uvas sucedeu
o pisar dos protestos, é Primavera nas mesquitas e desertos,
inquieto, arde o fogo das armas nas espetes a Leste. Mais branda, a
cidade lusa promete fumo, soprado por uma brisa atlântica e
conformada, pelos cantos sussurram vozes sem voz. No quiosque dos
jornais compram-se desgraças matinais, recebidas com torcer de
nariz, espanto e indignação, valem as páginas eróticas,
oferecendo ninfas a cinquenta euros em qualquer espelunca da
Mouraria. E o tabaco de enrolar, e as pastilhas, e as fofocas,
mundanas Cristinas e Cinhas, com quilos de maquilhagem.
As
árvores decepadas no Inverno cresceram, crescem
sempre, vingando o corte, altivas e ondulando. Zelosos, polícias de
amarelo fazem por deixar condutores de sorriso mais amarelo
ainda, no quotidiano jogo de gato e rato, terminado como sempre na
costumada coima e no ufano miar dos gatos. Deus fez o mundo,
previdente, o homem concebeu a multa. Teria Deus licença para
exibir maçãs, cobras e homens nus na via pública? Coima
garantida, asseveram os de amarelo, se multar pudessem um tal
Adão, infrator…
Diminuem,
os dias. É bom. Menos horas cedidas à crise, a serra exalando um
cheiro a húmus em cada matinal despertar. Concentrado, um
varredor recolhe os vestígios do Outono que fartos se espalham nas
ruas e nas almas, cumpridas as orgias de verde e da esperança,
folhas que foram de Verão e Primavera.
Os
deuses do Sul preparam a Grande Viagem, deixando aflitos seres de
regresso às cavernas, sem alegorias, assustados, levará luas até
regressarem, deixados a si próprios e ao Grande Inimigo: “Eles”.
Com sorte, alguns sobreviverão, portadores da esperança e da seiva
fecunda em renovada Primavera. Outros, tombados como as folhas de
Setembro e nos Setembros que se irão seguir, não.
A
romena, aquela ou outra, continuará a pedir esmola, alegres
miúdos comerão mais pedaços de pizza,
circunspectos polícias aplicarão correctivas multas. Os jornais
trarão novas capas, alegres ou tristes, renovados, os rostos hão-de
continuar, esculpidos pelos tempos e por eles marcados. E Setembro
também, no eterno spleen de
lento adeus e prometida fénix.