A
carrinha ficou no estacionamento enquanto os dois jovens se abasteciam no Pingo Doce da Portela, à porta, ruidosos
alunos do liceu devoravam pizza
e refrigerantes. Pelo carro das compras, levaram só alimentícios: bifes, arroz e
cerveja, um deles comprou o jornal. A velha carrinha pão de forma estava
em desalinho com jornais velhos pelo chão, um bidon de gasolina, toalhas de praia, um CD de Lady Gaga no
porta-luvas. Na Portela ninguém os conhecia, mas há três dias pelo menos
tomavam o pequeno almoço no
café do Baptista, sempre à mesma hora e antes de irem ao supermercado.
A
Gracinda do 26, frente ao jardim, reparou que estavam no
segundo esquerdo. Desde que o Ramiro morrera, três meses antes, a casa ficara
fechada, a única filha vivia em Espanha e só fugazmente lá ia. Amigos
espanhóis, pensou, cuscando atrás das cortinas, a carrinha era velha e desconjuntada. Já comentara até com a Ercília do primeiro esquerdo, quando esta
saiu a passear o cão. Os novos ocupantes pouco se viam e ignorava o que fariam
lá dentro, só havia uns tarecos que a filha do Ramiro deixara. Ao fim de cinco
dias sumiram, e a carrinha pão de forma não voltou a ser vista, para a
vizinhança caso arrumado e as conversas de volta à crise e à ciática da
Gracinda.
Uma
semana mais tarde, almoçava ela pataniscas com arroz, o Jornal da Tarde abriu com a notícia de que se suspeitava que a ETA
preparava operações em Portugal, temiam-se atentados em zonas balneares
espanholas, à semelhança de anos anteriores. Casas nos arredores de Lisboa
estariam a ser alvo de observação pela polícia portuguesa, bem como
todos os estrangeiros fora dos circuitos turísticos. Qual clique repentino, a Gracinda
lembrou-se dos rapazes do segundo esquerdo, partiram como chegaram e tinham um
sotaque esquisito, correu a comentar com a Ercília. Era isso, só podiam ser
eles, um telefonema para a esquadra despoletou uma visita ao local. Nada
apontava para a escolha de sítio tão visível, mas à cautela, havia que apurar.
Alertada por um vizinho jornalista, uma equipa da SIC plantou-se no local, transmitindo
em directo, logo atraindo a TVE e outros canais. Gracinda e Ercília
desdobravam-se em entrevistas, à TVI perguntaram mesmo quando seriam convidadas
para o Goucha, para terem tempo de arranjar o cabelo.
Montado
o perímetro, chegaram as minas e armadilhas e os habituais reformados do
jardim. Arranjada uma ordem judicial, a porta foi franqueada, mas aparentemente
nada de estranho foi detectado, se bem que jornais espanhóis pelo chão,
bem como um saco do Corte Inglés dessem
azo a suspeitas. Atraídos pelo circo
mediático, os vizinhos desdobravam-se em comentários, o Vítor vira-os no café
do Baptista, tinham aspecto de etarras sim senhor, um tinha até uma T-Shirt com as palavras Sex Bomb estampadas.
Passaram
uns dias, recolhidas impressões digitais e com a ajuda da Europol, lá se
descobriu que os dois eram espanhóis de Getafe e amigos da filha do Ramiro, a
viver em Espanha. Tendo ela oferecido a casa para uns dias em Portugal, já de
volta a Espanha estranharam a visita da Guardia
Civil. Estudantes, tinham ido conhecer Sintra e como fizesse bem tempo,
haviam ficado uns dias a fazer praia.
As
notícias reportando estes factos não sossegaram Gracinda. Ali havia tramoia.
Eram terroristas, sim senhor, mas a polícia não podia admitir, para não
espantar outros que cá estivessem, com esta se ficava, e tendo ido passear à
vila, todos os espanhóis lhe pareceram estranhos. O marido da Alzira
explicou-lhe que a ETA era coisa duns tipos que queriam a independência e não
gostavam do rei. Que tratantes, comentou com a Ercília, o novo rei de Espanha era
tão boa pessoa, um rapaz novo e bem parecido. Escutadas notícias sobre pepinos
infectados, só poderia ser coisa dessa ETA, à cautela não comprou mais nenhum,
poderiam estar contaminados.
Com
os dias, a coisa saiu da actualidade e as novidades passaram a ser sobre as
transferências do Benfica. A casa do Ramiro continuou fechada, para ela
perigoso esconderijo de bandidos, que andava para aí uma seita que só visto, já
nem o nosso cantinho escapava. Chegado o fim de Junho, Gracinda foi de férias
para a terra, o assunto morreu e Sintra saiu do mapa mediático, voltando ao
movimento do Pingo Doce e aos
pacientes a caminho das análises, até a escola fechou, para só abrir em
Setembro.
No
final do mês, com a Portela deserta e os serviços a meio gás, três indivíduos
com um Megane alojaram-se no prédio
ao lado do da Gracinda, transportando caixotes e sacos pretos colados com fita
adesiva, despovoado o bairro, nem se deu por eles. Na segunda noite, com um
pano com as palavras Euskadi
Ta Askatasuna estampadas, e ladeados por uma bandeira com uma
serpente enrolada num machado, os forasteiros, encapuzados, gravaram um vídeo
que mais tarde discretamente deixariam na Zara no Cascaishopping. Anunciando um
atentado, a mensagem não deixaria dúvidas sobre os planos da ETA. Razão tinha a
Gracinda, de férias lá na terra, a Portela definitivamente estava a virar um santuário terrorista.