Praia da Aguda, 12 de Janeiro. Um
homem fora encontrado esfaqueado, nem sinal de faca ou punhal, porém, o chão
ficara vermelho de sangue. Louro, estrangeiro talvez, aparentava sessenta anos
e exalava um odor forte, com uma lança tatuada no ombro. Fernando Monteiro,
inspector da Judiciária, analisava o cenário, enquanto os Homicídios tiravam
fotos. Parecia ter sido torturado, sem vestígio de carteira ou documentos, a única pista
era a lança tatuada.
Passados uns dias, a inspectora
Judite chamou Monteiro de urgência. Novo homicídio, desta feita um
padre, na igreja de Rio de Mouro, o sacristão estava em estado de choque.
Alcoólico em cura de desintoxicação, não resistira a beber o vinho da missa
antes de fechar a igreja, quando deu com o padre tombado sobre o altar,
uma marca de punhal no coração. No ombro desnudado, igualmente uma lança
tatuada.
-O padre é de origem belga,
Janus Vertessen, ao que parece foi ordenado já depois dos trinta, mas pouco se
sabe da sua vida, estava em Portugal há vinte anos - informou a inspectora,
consultando as suas notas -Não há outras testemunhas.
-E tem ligação com o crime da
Praia da Aguda? -inquiriu Monteiro.
-Uma mulher do Linhó fez
queixa de um estrangeiro que desapareceu sem lhe pagar a renda do quarto,
já é uma pista! Além de que parece coisa de serial killer: duas tatuagens
iguais, duas mortes com arma cortante...
-Bem, vamos até lá -rematou
o inspector, puxando dum cigarro.
Cidália Morais, a senhoria da
casa, informou que o tal inquilino era estrangeiro e desaparecera há mais
de dois meses, tinha sido recomendado por um amigo. Nos pertences, ainda no
quarto, roupas, um relógio, e um livro escrito pela vítima da Aguda ainda
por identificar, tinha uma foto sua no verso. Era um tal Jasper
Vertessen, de Gand, Bélgica, arqueólogo.
-Sabe onde podemos encontrar a
pessoa que o recomendou?
-Sim, vive em Galamares, perto
de Colares.
Lá chegados com Cidália,
apareceu-lhes um homem de quarenta anos, grisalho.
-Senhor João Afonso? Policia
Judiciária! Pode dizer-nos como conheceu o sr.Vertessen, a quem arranjou
alojamento?
-Bem, na verdade eu não o
conhecia pessoalmente. Apenas atendi ao pedido de um amigo, o António Rebocho,
que é funcionário do tribunal e sacristão em Rio de Mouro. Disse-me que o
Jasper era irmão do padre, e foi ele quem o trouxe, indiquei-lhe a casa da
Cidália para ficar.
-E porque não disse nada à
polícia, quando soube que o Jasper apareceu morto?
-O António disse-me que não
era preciso, ele próprio diria ao padre, estava com ele todos os dias.
-Mas afinal o que aconteceu ao
sr. Jasper, João? -perguntou a Cidália, um pouco a leste.
-Está morto. Estes senhores
devem saber mais que eu, já investigaram o corpo.
O sacristão, um tipo obeso de
nariz avermelhado, estava em casa a beber e ao vê-los pareceu assustado,
entornando o copo na alcatifa:
-Vieram prender-me?
-Porquê, existe algum motivo
para isso?
-Não, não…
-Então diga-nos tudo o que
sabe sobre o padre Vertessen e o irmão dele.
-A única coisa que sei é que
uma pessoa me pediu que quando vocês aparecessem lhes entregasse isto –respondeu,
sacando de um papel guardado no casaco. Era uma morada em Sintra. Lá chegados,
encontraram a porta aberta e entraram, era uma casa escura cheia de
antiguidades, parecia desabitada.
-Boa tarde, meus senhores -
disse uma voz com sotaque na penumbra, sentada numa cadeira de baloiço- chegaram
mais depressa do que eu previa, fiquem à vontade. Era um homem de uns
setenta anos, cabelo branco e voz rouca, com um roupão de seda azul.
-Quem é o senhor? É claro que
pode optar por não prestar declarações- esclareceu a inspectora.
-Não se preocupem, não haverá
tribunal – respondeu o velho, levantando-se - estou velho e doente,
os meus dias estão a acabar, por isso acho melhor contar-lhes tudo, assim a
história não morre comigo. Servindo-se de um cognac, começou a falar:
-O meu nome é George Perkins,
sou americano e tal como os dois que morreram, pertenço à Irmandade da Lança-
e desnudando o tronco, deixou visível uma tatuagem igual à do padre e do irmão,
uma lança.
-Éramos doze, como os
apóstolos - continuou - Nos anos sessenta, um grupo em que eu e os
Vertessen nos incluíamos, descobriu em Chipre a lança com que Jesus Cristo foi
trespassado por um soldado na cruz. O Jasper era arqueólogo, e atestou a
veracidade, vestígios de sangue permitiram a conclusão. Então, o grupo jurou guardar a relíquia em segredo, tendo ficado na minha casa em Salzburgo
durante muitos anos. Mas o Jasper e o Janus traíram-nos, e roubaram-na, fugindo
depois.
-Estou a ver- reparou a
inspectora, impassível, o velho serviu-se de um cognac, continuando:
-Mas nós prometemos recuperar
a lança, e puni-los pelo acto. Só que os anos passaram, os outros foram morrendo
e só restei eu. Um dia localizei o Janus aqui em Portugal. Estava em Viena
quando o vi na televisão, ao lado do Papa, quando ele cá
esteve. Janus tornara-se padre, o safardana, e o Jasper,
depois de enviuvar, veio para cá também, para estar mais perto do irmão. O resto
já os senhores sabem, uma lança fez o seu trabalho! -concluiu, terminando
a bebida.
-E o sacristão, tem alguma
ligação com o caso? -sondou a inspectora Judite.
-Não, é um pobre diabo,
pedi-lhe apenas para vos entregar a morada a troco duma caixa de vinho
alentejano, é tudo.
-Então e a lança, foi
recuperada? -questionou Monteiro.
Perkins fez silêncio e encolheu os
ombros. Levado sob detenção, o seu estado de saúde decidiu o juiz a mantê-lo em
prisão domiciliária. Como previra, não chegou a haver julgamento, um mês mais
tarde um tumor no fígado ceifou a vida do último sobrevivente da Irmandade da
Lança. Enquanto isso, em Boston, Massachussets…
Sem comentários:
Enviar um comentário