Na casa de Janas, desde há muitos anos que na árvore de Natal aparece pendurado um envelope vermelho, sem remetente ou destinatário. Tudo começou por causa do tio Álvaro. O velho e espartano solteirão detestava o Natal, não porque não estimasse a família, mas por ser para ele massificador de emoções, fazendo da fraternidade algo a que se acrescia lucro e iva. Era avesso às compras, às comezainas pantagruélicas, e aos pares de meias com ursinhos embrulhadas com fitas cintilantes, confissão desesperada de quem não tinha nada mais original para oferecer. Até o Pai Natal fora inventado pela Coca-Cola, alegava reticente.
Sabedora do seu feitio torto, naquele Natal Sofia decidiu deixar de lado as peúgas e gravatas às bolas e foi à procura de algo que ele apreciasse, e a ideia surgiu-lhe um pouco por acaso: Sérgio, o filho mais novo, jogava futebol na equipa do colégio, e em meados de Dezembro a sua equipa fora disputar um jogo contra uma de Monte Abraão. Em contraste com os equipamentos limpos e de boas marcas da equipa do Sérginho, os deles eram usados e sujos, sapatilhas esfarrapadas, retrato de um mundo mais avaro e real. O tio Álvaro também foi ao jogo, e sentiu claramente a diferença entre os que têm e os que anseiam, reais mundos deste mundo. Os de Monte Abraão perderam, mas com o orgulho ferido, calaram a derrota, não eram as sapatilhas a única coisa esfarrapada ali. O tio Álvaro, velho adepto de futebol, e do Sporting- nasci para sofrer, dizia - no fim do jogo encolheu os ombros, taciturno:
-Os miúdos da outra equipa têm potencial, mas é pena, têm poucas condições, é por isso que muitos deles depois desistem. Apesar de torcer pelo nosso Sérgio, hoje gostava que tivessem ganho! -desabafou, um pouco mais expansivo que o habitual.
Nos anos sessenta, Álvaro Camacho fora treinador de juniores no Seixal, a alguns rapazes viu mesmo singrar nas divisões intermédias, amigos verdadeiros para o resto da vida. Ainda nessa altura, no café do Fernando, com muitos dos putos já adultos e veteranos, recordava regularmente partidas antigas e carreiras perdidas. O desabafo deu a Sofia a ideia para um presente que por certo o levaria a mudar de ideias quanto ao Natal. Divorciada, dona duma boutique, com alguma folga financeira que permitira manter a casa de Janas, tinha um coração generoso. Dias mais tarde, entrou numa loja de desporto, comprou onze pares de sapatilhas e enviou-as à escola de Monte Abraão. Na véspera de Natal, discretamente, pendurou na árvore cintilante um envelope vermelho com um bilhete para o tio Álvaro, a oferta das sapatilhas aos miúdos era o presente dela para ele. Surpreendido, esboçou um sorriso discreto mas luminoso e naquele ano, depois da ceia, até comeu filhoses e bebeu vinho do Porto.
Nos anos seguintes, a árvore de Natal passou a contar sempre com um envelope vermelho pelo qual um grupo de crianças ou pessoas carentes beneficiaria, sem o saber, dum tio que recriminava o Natal, virando mesmo tradição de família: um ano, foi um cheque a um paralímpico sem meios; outro, um peru para o lar de idosos onde estava a Ercília, antiga criada da casa, e o envelope surpresa passou a ser o momento alto do Natal pelo qual o tio Álvaro passou a aguardar, ansioso, sem grandes exuberâncias, mas interiormente feliz. Religiosamente, era sempre o último presente a ser lido na noite de Natal, com o tempo até o Sérgio e os irmãos mais novos deixaram de lado os brinquedos que já sabiam ir receber, à espera do momento em que, qual entrega dos Óscares, se revelaria o nome dos contemplados desse ano. O tempo foi passando e as crianças crescendo, mas o inevitável envelope nunca perdeu o seu lugar e encanto.
Um dia, um cancro de pulmão fez das suas, e o tio Álvaro partiu, levando o homem que detestava o Natal mas involuntariamente fizera vários Natais felizes. O ano passado, ainda chorosos pela perda do carismático tio, Sofia e Sérgio, já adulto, como sempre enfeitaram a árvore junto à lareira, onde pontificavam retratos de familiares sorridentes, mortos e vivos, o tio Álvaro em destaque, com o seu bigode farto e o nariz achatado. No meio das bolas e luzes, e do presépio da avó Chica, de novo um envelope vermelho, bem ao centro. Foi Sérgio quem, cúmplice, o colocou. Antes da ceia do Natal, um segundo envelope adornou outra ramagem da árvore, e à noite, mais três se lhe juntaram. Também os irmãos mais novos de Sérgio, sem o dizerem, colocaram envelopes, e sorridentes, disfarçaram surpresa, alegando ser coisa do Pai Natal. À meia-noite, depois da ceia e dos presentes, todos à vez foram à árvore e abriram o envelope com a prenda que em memória do tio Álvaro iriam oferecer: a Joaninha, duas bonecas para o ATL da escola, em Morelinho; o Rui, uma bola de futebol para os filhos do Etelvino, desempregado e em dificuldades; até o Marquitos, na ingenuidade dos seus cinco anos ofereceu um desenho representando o tio Álvaro, de quem apenas vagamente se lembrava, treinando dois meninos a jogar futebol, para pendurarem no infantário onde andava. Nos natais da casa de Janas, o espírito de Natal passou a ser o sagrado momento de homenagem àquele velho tio avesso às aparências, e à convicção de ser mais importante dar que receber. É Dezembro de Natal, na rádio toca Rudolph the Red Nosed Reindeer, e fico por aqui, que há envelopes para ir comprar…
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