Alfredo Regaleira ganhara as
autárquicas de 2017 pelo Partido dos Verdadeiros Sintrenses, criado após o
resgate do FMI de 2011 e formado nas redes sociais. Oriundo duma família
abastada, fora administrador de empresas municipais, vereador e suplente da
distrital. Depois da inesperada morte de João Xavier, o candidato preferido do
partido, o recurso foi candidatar o cinzento tecnocrata, eleito pela margem
mínima presidente da Câmara de Sintra, para um mandato de quatro anos.
Era uma pessoa amarga e seca,
enfiado em estatísticas, telemóveis e impessoais powerpoints.
Raramente visitava as associações ou recebia os munícipes, o
Orçamento pautava-se por cortes cegos, ferrenho adepto do fim do
estado social. Os funcionários odiavam-no, mas receavam pronunciar-se. A
introdução de controlo da assiduidade através da retina, a diminuição dos
funcionários para metade, as câmaras de vigilância nos serviços, controladas a
partir da presidência aconselhavam prudência. Ivone, a secretária, detestava-o,
sempre carrancudo, o sorriso de plástico apenas para televisão ver,
implicara até com um retrato da filha que tinha na secretária. Familiaridades a
mais, dizia, mal-humorado. Aos que lhe pediam apoio, despachava sem
contemplação, "não há dinheiro, não
sou a Santa Casa", respondia, insensível. Até um lancinante pedido dos
pais da pequena Sandra para ajudar a fazer um transplante de medula enviara
para o Querida Júlia, “as
pessoas são lamechas”, desabafou, entediado, “hão-de lançar um peditório.” Divorciado e sem filhos, morava
na Beloura com Sócrates, um labrador ainda cachorro, e aí se
isolava quando se conseguia livrar das aborrecidas cerimónias nos infantários e
lares de idosos, distribuindo beijos a crianças ranhosas e velhas sempre a queixar-se.
Uma noite, já tarde, e de regresso
a casa, passado o Ramalhão, um vulto sumido e esbranquiçado arrastando
correntes nos pés, surgiu-lhe à frente do carro. Esfregou os olhos, alguma
digestão mal feita, pensou. O vulto, translúcido, entrou pelo vidro do carro e
sentou-se no banco a seu lado:
-Boa noite Alfredo! -saudou,
numa voz metalizada. Sou eu, o Mário!
Atónito, reconhecia Mário Rabaçal,
seu correlegionário político e antigo administrador da empresa municipal
de educação, falecido meses antes num acidente ali perto.
-Não é possível! Mas tu não
morreste? Estive no teu funeral, c’um raio…
-Estou morto sim, Alfredo.
Mas venho para te avisar que ainda estás a tempo de emendar a mão. Os
cortes no leite das escolas, a comida estragada que servíamos nas cantinas, o
desfalque na tesouraria, tudo paguei bem caro, errando agora como uma alma
penada! -e exibiu um grilhão na perna, pesado, parecia uma cena de thriller americano. -Venho avisar-te
que ainda esta noite receberás três visitas, às quais deves estar muito atento.
-Mas…E antes que tivesse
tempo de concluir, o banco do lado ficou de novo vazio, eclipsando-se o vulto
no éter.
Chegado a casa, bebeu um chá de
limão e foi deitar-se. Devia ter sonhado, pensou. Meia hora não era volvida
quando uma figura irradiando luz, de casaca e cartola, lhe surgiu no quarto.
Sobressaltado, pensava chamar a Policia, quando o vulto o advertiu que não
abrisse a boca.
-Boa noite Alfredo Regaleira.
Eu sou a Sintra do passado. Levanta-te e acompanha-me!
Mal tivera tempo de reagir e de
pijama, já o vulto o levava voando nos céus de Sintra, para logo pousarem no
Palácio da Pena. Candelabros com velas profusamente espalhados iluminavam a
noite, lá dentro uma orquestra tocava no salão grande, onde vistosas damas e
dignitários com fardas coloridas deslizavam dançando. Animado, o rei D.
Fernando conduzia uma rubra cortesã ao som da Marcha Radetsky. Lá em baixo, na vila, carruagens passeavam dandys
com casadoiras donzelas, na estação do Larmanjat, saloios com jumentos
esperavam novos forasteiros, para os transportarem ao Lawrence e ao Nunes.
Felicidade e harmonia reinavam. Alfredo, absorto, admirava aquele quadro de
beleza, era Sintra no seu esplendor, romântica e aristocrática. Ia interpelar o
espírito, quando de novo se viu na cama, sentado e baralhado. Foi à
cozinha beber água, apaziguando o torpor em que se achava. Minutos depois,
encostada ao frigorífico, outra figura o aguardava já, um homem de fato e
óculos escuros, fumando um cigarro e com um jornal debaixo do braço. Conformado,
abordou-o:
-Suponho que sejas Sintra do
presente…
O vulto fez um gesto afirmativo com a cabeça, e
de automóvel saíram para Sintra, deserta à noite. Num lar de idosos
racionava-se a luz por falta de verba, uma família de desempregados vasculhava
caixotes buscando comida, enquanto na Volta do Duche, um jovem fazia carjacking
a um incauto turista, logo se pondo em fuga. Encolheu os ombros, suspirando, e
pediu que voltassem, esta realidade conhecia ele, mais pelos relatórios
que por experiência.
De volta a casa, inquieto e
pensativo no sofá da sala, com o labrador aos pés, receou a terceira
visita. Das traseiras, minutos depois, surgiu um jovem desdentado, com um capuz escondendo-lhe a cabeça e dois piercings no lábio. Olhando com desprezo, fez-lhe sinal
que o seguisse. Acabrunhado, de motorizada, foram ver a Sintra do futuro:
sem-abrigo aqueciam-se em fogueiras na zona pedonal da Estefânea, na Vila, no
lugar da Piriquita, surgira uma loja chinesa, apenas sete moradores resistiam,
a igreja de S.Martinho ruíra por falta de obras. Na Volta do Duche, alinhavam-se contentores
onde moravam famílias sem tecto, depois dos despejos por si ordenados. A
pequena Sandra morrera por falta de transplante, desesperados, os pais não
haviam conseguido o dinheiro para a operação. Parando no cemitério do Chão Frio,
o jovem dos piercings apontou-lhe uma lápide grafitada onde se lia:
“Alfredo Regaleira 1970-2018”, descontraído, um cachorro urinava em
cima. Estarreceu, com suores frios.
Mal refeito, acordou na cama, em
sobressalto. Abriu os olhos, o labrador,
que dormitava, ergueu-se, e lambeu-lhe as mãos, brincalhão. Amanhecia lá fora, faltavam dois dias para o Natal.
Vestiu-se num ápice, meteu-se no
carro e correu para a Câmara. Pelo caminho, sorridente, distribuiu bons dias
a alguns atónitos munícipes, acenando e buzinando, e parou numa florista a comprar
um bouquet para a Ivone, a quem entregou com um beijo na mão.
-Ivone, mande chamar os pais
daquela pequena, a Sandra, desmarque todas as reuniões, e convoque o director
do departamento de assuntos sociais, é urgente. Ah, nunca lhe disse que o seu
penteado é muito charmoso?
Ivone hesitava entre o boquiaberto
e o espantado, derretendo-se dengosa ante o piropo. Correu a dar andamento, o
homem tinha-se passado, com certeza.
Daí em diante, as pessoas foram a
prioridade de Alfredo Regaleira. Inaugurou o novo hospital, apoiou os artistas
do concelho, aboliu o controlo de assiduidade, criou empregos. Foi reeleito
duas vezes, sempre com maioria absoluta. À cabeceira da cama, na casa da
Beloura, onde agora, curada, a pequena Sandra brinca com o labrador,
está sempre um inspirador livro da autoria de Charles Dickens…
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