A
funcionária da limpeza pasmava, no hemiciclo da Assembleia, nem oito da noite
eram, e um indivíduo, deputado por certo, dormia com a cabeça sobre a bancada,
como não haveriam as pessoas de ter má opinião dos deputados. Preparava-se
Olívia e a sua esfregona para lavar o local onde muito se lava roupa suja,
quando aquele vulto com óculos de massa lhe surgiu no areópago do povo.
Hesitando em acordá-lo, aproximou-se, era na bancada do Partido da Liberdade, o
computador estava aberto na página do Facebook, e uma mensagem dum tal
Libertador rezava “Já pagaste pelos teus
actos. Lol” Visto mais de perto, o deputado parecia branco como a cal da
parede, já ninguém restava no hemiciclo, a sessão sobre os novos impostos
terminara pelas sete horas. A medo, tentou acordá-lo, ao que o corpo sem acordo
do representante da Nação, a um toque, tombou no chão. Uma mancha de sangue
brotando da camisa branca deixava à vista o horroroso cenário: o deputado
estava morto!
Sirenes de
ambulância e piquetes das televisões acorreram, mal se espalhou o sucedido.
Crime na Assembleia, relatavam uns, ajuste de contas, aventavam outros, Hélder
Carneiro, deputado por Faro, estava ligado ao sector imobiliário, um condomínio
de luxo em Vilamoura antes de ser candidato originara querelas entre sócios, um
dos quais ele. E o Libertador? Quem seria a enigmática figura?
O inspector
Tomás, dos Homicídios, tomou conta da ocorrência. Autopsiado, a morte
foi atribuída a um tiro de pistola com silenciador, em cheio no coração, a
ultima pessoa a ver Carneiro vivo fora Vasco Trigoso, do Partido dos Valores,
adversário político mas correligionário da caça, dias antes tinham estado
em Vinhais, numa batida ao javali. Nada fazia supor tal tragédia: deixava
mulher e um filho, na assembleia apenas se levantara uma vez para votar o
Orçamento. Sempre que reunia o plenário, jogava Farmville,
apenas interrompendo para aplaudir ou rematar com um “muito bem!” as
intervenções dos colegas. Um pormenor chamou a atenção ao inspector: sobre a
mesa, um papel, onde estava desenhado um flamingo, a morte tê-lo-ia surpreendido
quando faltava desenhar uma pata.
Nada fazia
sentido. Na televisão, circunspectos, o Primeiro-Ministro e vários deputados recordavam o
insigne cidadão e o muito que havia a esperar de tão loquaz parlamentar. Nenhuma pista parecia esclarecer o
móbil: não tinha inimigos declarados, a família era equilibrada, politicamente
pardacento, dele nunca se ouviria falar, não fora a infausta morte no seio da
representação nacional. No dia do funeral, muito concorrido, discretamente, o inspector Tomás observou os presentes: gente do Algarve, deputados de todos os
partidos, e muito povo, sempre pronto a comparecer quando a televisão está por
perto. Formado o cortejo fúnebre, uma carrinha branca com três homens dentro
incorporou-se, eram dum tal Hotel Flamingo, em Vilamoura, um animal semelhante
ao do papel encontrado junto ao corpo do deputado estava pintado na porta a azul.
Curioso,
Tomás não mais a largou. Depois do funeral, seguiu a carrinha, que parou no Gambrinus, onde os dois
ocupantes jantaram, falando baixo e num tom zangado, viu pelo esbracejar dum
deles. Com o telemóvel, tirou umas fotos e mandou averiguar as identidades,
todos aparentavam mais de quarenta anos, um usava um laço preto, como se fosse um
maestro. Dali seguiram para um hotel, onde outro homem os aguardava no lobby, detendo-se a conversar um pouco e
subindo para os quartos depois. Mal se retiraram, Tomás ligou a Eduardo, seu
colaborador na PJ, que chegou em dez minutos e, identificando-se, pediu os nomes
dos três. Eram os donos do hotel, informou acabrunhado o recepcionista. Daquele
e de muitos outros, o Flamingo de Vilamoura também. Havia gato ali, mas por
enquanto nada havia de concreto.
Colhidas
informações na Assembleia, Tomás ficou a saber que o discreto Carneiro
integrava a comissão de inquérito ao BPN, como vogal, Felício Borges,
correligionário de bancada, lembrava-se de o ter ouvido certa vez ao telefone a
falar com um tal Loureiro, e a garantir que ou viria um flamingo ou seria pior
para ele. Requisitado o historial de chamadas, efectivamente havia entre os
contactos um tal Abel Loureiro, a residir em S.Tomé desde o Natal. Perspicaz,
teve uma ideia: adicionou sob nome falso o Libertador no Facebook e escreveu,
sob o pseudónimo Albatroz: “Libertador,
tenho o Flamingo comigo”. Do outro lado, ao fim de uns minutos, alguém
entrou no chat: “Quem és tu, Albatroz?”, a que se seguiu “O dono do milho. O pobre do Milhafre ficou pelo caminho mas o voo do
Albatroz há-de prosseguir…”. Continuando a dar conversa, o Libertador
perguntou: “E onde é o poleiro do Albatroz?”.
Aí, Tomás lançou o isco: “Na casa do
Flamingo, para uma bebida. Às cinco.”
Às cinco da
tarde, no bar do Hotel Flamingo, Tomás, de fato e gravata, simulando ser um
empresário de hotelaria, aguardava com um gin tonic.
Minutos depois, um homem, que reconheceu do hotel, e do funeral, apareceu. Desconfiado,
cumprimentou, e mandou vir uma garrafa de whisky
e cajus. Era Macário Teles, industrial hoteleiro. O inspector Tomás inventou uma
narrativa: queria investir no Algarve, e o grupo do Flamingo pareceu-lhe de
referência. O nome da cadeia fora-lhe sugerido pelo deputado Carneiro, que
grande perda fora para o país. A invocação do nome do falecido deixou o Teles
desconfiado, e a tirar nabos da púcara:
-Conhecia o deputado Carneiro, senhor….
-Almeida. Almeida da Câmara. Sim, era amigo da família
e tivemos negócios no passado. Grande fatalidade! Quem terá cometido um crime
tão hediondo? E no sítio que foi…
-Pois é, ainda custa a crer. Ele foi meu sócio há uns
anos, em Armação de Pêra, nuns prédios de apartamentos, depois meteu-se na política
e só acompanhei de longe...
O telefone
de Tomás tocou nesse instante, era o Eduardo, da sede, com informações frescas.
Sorrindo, Tomás foi dando goles no gin,
enquanto Teles fumava um charuto. Terminado o telefonema, e mais incisivo,
Tomás voltou à conversa com o seu interlocutor, desta feita mais directamente:
-Diga-me, os senhores não fizeram esses apartamentos
com dinheiro oriundo do tráfico de droga? E quando a sociedade se desfez, ele não
lhe ficou a dever dinheiro?
O outro
ruboresceu, e antes que dissesse algo, Tomás sacou da pistola e identificou-se:
-Tomás de Oliveira. PJ!
Sem reacção o
outro deixou-se estar, retorquindo com alguma calma aparente:
-Não sei do que fala, inspector. Não via o
Carneiro há anos, e se quer saber, até dei dinheiro para a campanha dele por
Faro, através do partido. Quanto ao resto, são especulações, quero um advogado,
se não se importa.
Tomás chamou
a brigada, levando Macário para a PJ. Somados dois e dois, chamadas telefónicas
comprovavam um conluio entre Teles e Loureiro, a partir de S.Tomé, para se
verem livre de Carneiro. Aproveitando-se do novo posto, este chantajeara
Macário com uma queixa por fuga ao fisco, com documentos que revelavam
negociatas nos anos oitenta, e das quais não recebera a sua parte. Na comissão
do BPN, implicaria Loureiro, todo o projecto do Flamingo fora financiado pelo banco, com dinheiro duma off-shore em Gibraltar. Ao meter-se com
quem não devia, pagava com a vida, o autor material fora um pistoleiro
contratado, um brasileiro, disfarçado de empregado da limpeza, que o alvejou, já só
ele restava no hemiciclo. Acabou sendo preso no Meco, enquanto tomava uma
caipirinha. Era Teles o Libertador.
Presos os
responsáveis, Tomás, regressando ao local do crime, a dar conta das conclusões,
viu no lugar do defunto o novo deputado que o substituíra: Porfírio Lopes, antigo
negociante de carnes, ali para dar o corpo pelo partido, e se possível, por
algum bife do lombo… Info-excluído, não sabia usar o computador, nem
tinha amigos no Facebook. Ainda.
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