terça-feira, 2 de outubro de 2012

A democracia e suas melancolias



A relação do Estado com o regime democrático está hoje em crise, e num contexto de modernidade, a sociedade civil procura novos paradigmas e palcos. Verifica-se que quanto mais a sociedade civil se afirma, maior número de novos centros de decisão e campos informais de influência social vão surgindo, mais o Estado se afastando da sociedade, não sabendo como se relacionar com estas novas realidades políticas, e, para ele, talvez, apocalípticas... Isto, trás, contudo, novos desafios, porquanto, sendo os novos movimentos sociais na forma menos políticos que os antigos, (ou até raivosa e perigosamente antipolíticos) mais complexo é integrá-los como agentes de mudança numa nova representação de democracia representativa. Há, efectivamente, novas modalidades de representação social que fazem a sua aparição, tendentes a desenvolver formas de reivindicação que escapam à política tradicional, e até ao Estado, que assim, sem entender bem ainda ao que vêem, e como surgiram tais movimentos, vive uma espécie de esclerose democrática.
A crise actual, é antes de mais, e acentuado pela crise económica, uma crise das democracias, proporcionada pelo rompimento do tecido social que esta despoletou. O atomismo dos protestos no passado recente, e a anomia de muitos deles, sobretudo nos anos de crescimento material, retiraram às reivindicações de franja ou politicamente engajadas, dimensão social e comunitária de relevo. Foram anos de hipertrofia da democracia formal, burocratizada, nas suas representações, hoje esgotadas, e que levou até agora à desmobilização dos cidadãos menos participativos, e sua alienação política, fase em que a representação política se esgotou, e hoje, passado esse período de dita “democracia burguesa” é interpretada pelos novos contestatários como usurpação, os detentores do poder como meros ventríloquos, e os espaços e instituições, semânticos lugares de exercício das liberdades. Como escreveu Anthony Giddens, na fase da sociedade da abundância, o homem foi encerrado “no cárcere férreo da racionalidade burocrática”, salivando ao osso que pavlovianamente lhe foram atirando. Em Portugal, foram os anos do cavaquismo, da Europa, da Expo-98 e do consumo desenfreado.
O que os movimentos em gestação hoje demonstram, e aos poucos reivindicam, é um retorno da ética, face aos delitos financeiros, o tráfico de influências e o desprezo pelo Eu, pessoal e colectivo. Está em construção uma nova moral, ultrapassada que está a fase da sociedade dos direitos eternos e, sacrificada, a sociedade se revolta contra a alegada sacralidade dos deveres (da austeridade, da exclusão, da canga sem sentido e sem esperança). Depois da democracia narcísica dos anos 90, pré-Lehman Brothers, BRIC’s e Euro, a noção de pertença está em reconstrução, e com ela, a refundação da ideia de democracia, atingidos que foram conceitos como a liberdade e a perspectiva da abundância. Mas para tal ocorrer de forma sustentada, há que avançar para um individualismo responsável, para novos espaços de criação e partilha, que dêem sentido a um novo conceito de deveres trazendo novas formas de empenho e de regulação social, no sentido a que Hanah Arendt chama de “novos espaços públicos de liberdade”. E, no seu pluralismo, não sendo a sociedade civil moderna plenamente democrática, por não assentar num pluralismo normativo, ela sê-lo-á sobretudo, e para já, na forma de agir comunicacional e na representação de significantes que convidam a uma nova teorização das ideias de liberdade e democracia, moldada na pulsão entre o Poder Ser e o Querer Ser.
A crise deixou às claras o mundo do fragmento, em que da democracia funcional e normativa, passamos para a pulverização das liberdades, sem que uma linha condutora ou triunfante se desenhe ainda, fruto dos hedonismos e das ideias que a teia da liberdade paradoxalmente criou, e que passa pela resposta a dar no futuro à seguinte pergunta: como conciliar identidade e pluralidade, como dar carácter funcional, por exemplo, no caso do protesto de 15 de Setembro, aos manifestantes isolados e individualistas, rebeldes por uma causa pessoal e egoísta (embora legítima) e aos representantes de grupos profissionais, etários ou de facção, e dar-lhes expressão política e rostos, unidade na diversidade? É esse o debate que se coloca nos dias que correm. Como escreveu Karl Popper, “devemos caminhar para o desconhecido, o incerto e o inseguro, utilizando a razão de que pudermos dispor para planear tanto a segurança como a liberdade
A extinção do Estado Social e a recusa dos “mercados” em voltar ao providencial estado keynesiano, está a gerar uma crise generalizada de descrença no sentimento do futuro, e nesse quadro, a acção colectiva denota contornos de se focar não só nos temas económicos, mas de estruturar uma reacção à perda da felicidade, no presente quadro de constrangimentos sociais e políticos. Daí ter de se reinventar um novo modelo, assente na Justiça enquanto parte duma vasta Política de Liberdades (colectivas, funcionais e pessoais), que ofereça perspectivas de vida e não imponha formas ou modos de a viver.
Num tal quadro, a cidadania, deve ser concebida como um sistema que torne como estrutural o direito a ser diferente dentro dum conjunto de direitos/deveres fundamentais de expressão da pertença. Isso ressaltou das manifestações de 15 de Setembro, grande laboratório de experimentalismo social, donde algumas ideias se podem retirar de como, numa sociedade aberta e na era das redes sociais, respira (aflita e a despertar) a sociedade civil portuguesa em 2012, uma democracia melancólica, a querer rasgar o espartilho mental entre um passado de representações em ruptura, e um futuro de novos paradigmas, com o Homem (como sempre, desde a caverna de Platão) como centro das coisas, reinventor da democracia, e duma nova organicidade, compatível com estes dias de cólera.

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