A relação do Estado com o regime democrático está hoje em
crise, e num contexto de modernidade, a sociedade civil procura novos
paradigmas e palcos. Verifica-se que quanto mais a sociedade civil se afirma,
maior número de novos centros de decisão e campos informais de influência
social vão surgindo, mais o Estado se afastando da sociedade, não sabendo como
se relacionar com estas novas realidades políticas, e, para ele, talvez,
apocalípticas... Isto, trás, contudo, novos desafios, porquanto, sendo os novos
movimentos sociais na forma menos políticos que os antigos, (ou até raivosa e
perigosamente antipolíticos) mais complexo é integrá-los como agentes de
mudança numa nova representação de democracia representativa. Há, efectivamente,
novas modalidades de representação social que fazem a sua aparição, tendentes a
desenvolver formas de reivindicação que escapam à política tradicional, e até
ao Estado, que assim, sem entender bem ainda ao que vêem, e como surgiram tais
movimentos, vive uma espécie de esclerose democrática.
A crise actual, é antes de mais, e acentuado pela crise
económica, uma crise das democracias, proporcionada pelo rompimento do tecido
social que esta despoletou. O atomismo dos protestos no passado recente, e a
anomia de muitos deles, sobretudo nos anos de crescimento material, retiraram
às reivindicações de franja ou politicamente engajadas, dimensão social e
comunitária de relevo. Foram anos de hipertrofia da democracia formal,
burocratizada, nas suas representações, hoje esgotadas, e que levou até agora à
desmobilização dos cidadãos menos participativos, e sua alienação política,
fase em que a representação política se esgotou, e hoje, passado esse período
de dita “democracia burguesa” é interpretada pelos novos contestatários como
usurpação, os detentores do poder como meros ventríloquos, e os espaços e
instituições, semânticos lugares de exercício das liberdades. Como escreveu
Anthony Giddens, na fase da sociedade da abundância, o homem foi encerrado “no cárcere férreo da racionalidade burocrática”,
salivando ao osso que pavlovianamente lhe foram atirando. Em Portugal,
foram os anos do cavaquismo, da Europa, da Expo-98 e do consumo desenfreado.
O que os movimentos em gestação hoje demonstram, e aos
poucos reivindicam, é um retorno da ética, face aos delitos financeiros, o
tráfico de influências e o desprezo pelo Eu, pessoal e colectivo. Está em
construção uma nova moral, ultrapassada que está a fase da sociedade dos
direitos eternos e, sacrificada, a sociedade se revolta contra a alegada sacralidade
dos deveres (da austeridade, da exclusão, da canga sem sentido e sem esperança).
Depois da democracia narcísica dos anos 90, pré-Lehman Brothers, BRIC’s e Euro,
a noção de pertença está em reconstrução, e com ela, a refundação da ideia de
democracia, atingidos que foram conceitos como a liberdade e a perspectiva da
abundância. Mas para tal ocorrer de forma sustentada, há que avançar para um
individualismo responsável, para novos espaços de criação e partilha, que dêem
sentido a um novo conceito de deveres trazendo novas formas de empenho e de
regulação social, no sentido a que Hanah Arendt chama de “novos espaços públicos de liberdade”. E, no seu pluralismo, não
sendo a sociedade civil moderna plenamente democrática, por não assentar num
pluralismo normativo, ela sê-lo-á sobretudo, e para já, na forma de agir
comunicacional e na representação de significantes que convidam a uma nova
teorização das ideias de liberdade e democracia, moldada na pulsão entre o
Poder Ser e o Querer Ser.
A crise deixou às claras o mundo do fragmento, em que da
democracia funcional e normativa, passamos para a pulverização das liberdades,
sem que uma linha condutora ou triunfante se desenhe ainda, fruto dos
hedonismos e das ideias que a teia da liberdade paradoxalmente criou, e que
passa pela resposta a dar no futuro à seguinte pergunta: como conciliar
identidade e pluralidade, como dar carácter funcional, por exemplo, no caso do
protesto de 15 de Setembro, aos manifestantes isolados e individualistas,
rebeldes por uma causa pessoal e egoísta (embora legítima) e aos representantes
de grupos profissionais, etários ou de facção, e dar-lhes expressão política e
rostos, unidade na diversidade? É esse o debate que se coloca nos dias que
correm. Como escreveu Karl Popper, “devemos
caminhar para o desconhecido, o incerto e o inseguro, utilizando a razão de que
pudermos dispor para planear tanto a segurança como a liberdade”
A extinção do Estado Social e a recusa dos “mercados” em
voltar ao providencial estado keynesiano, está a gerar uma crise generalizada
de descrença no sentimento do futuro, e nesse quadro, a acção colectiva denota
contornos de se focar não só nos temas económicos, mas de estruturar uma
reacção à perda da felicidade, no presente quadro de constrangimentos sociais e
políticos. Daí ter de se reinventar um novo modelo, assente na Justiça enquanto
parte duma vasta Política de Liberdades (colectivas, funcionais e pessoais),
que ofereça perspectivas de vida e não imponha formas ou modos de a viver.
Num tal quadro, a cidadania, deve ser concebida como um
sistema que torne como estrutural o direito a ser diferente dentro dum conjunto
de direitos/deveres fundamentais de expressão da pertença. Isso ressaltou das
manifestações de 15 de Setembro, grande laboratório de experimentalismo social,
donde algumas ideias se podem retirar de como, numa sociedade aberta e na era
das redes sociais, respira (aflita e a despertar) a sociedade civil portuguesa
em 2012, uma democracia melancólica, a querer rasgar o espartilho mental entre
um passado de representações em ruptura, e um futuro de novos paradigmas, com o
Homem (como sempre, desde a caverna de Platão) como centro das coisas,
reinventor da democracia, e duma nova organicidade, compatível com estes dias
de cólera.
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