Quando a realidade imita a ficção... Uma história do meu blogue Café com Adoçante com mais de um ano.
A
avó voltava do supermercado, trazia
pizzas e um pato, faria aquele espectacular pato com laranja que só ela sabia,
com arroz tostado e seco e pele crocante, mau para a dieta, retemperador para o
estômago. O avô, menos dado à comida, apostava no peixe, grelhado sobretudo.
Francisco
e Teresa desde tenra infância viviam com os avós, a morte precoce do pai e uma
mãe funcionária pública, fizera deles os pais de substituição, até gostavam,
agora que a filha Sofia crescera e reformados pouco tinham com que se
ocupar. Francisco, nos seus doze anos, deambulava entre a escola, a playstation e a banda larga, sempre
enfiado no quarto, todos os dias a avó invariavelmente lhe levava o lanche
favorito, uma baguette com pasta de
frango e uma cola light, era uma
querida, até acompanhava os Morangos e sabia quem era a Lady Gaga, o
som do My Space de Francisco já lhe
era familiar. Teresa até lhe escolheu um toque de telemóvel, embora preferisse
o Frank Sinatra, mais soft. Sorriso rasgado, jovialidade de mulher
urbana e reformada dos correios, educava os netos na responsabilidade,
apaparicando nas comidas, mas exigindo método e ordem em casa, quer o
avô, quer eles, tinham de trazer sempre tudo arrumado, com horas para comer.
Quem chegasse atrasado teria de tratar do seu prato e lavar a loiça. À noite,
quando iam dormir, não dispensava aconchegar-lhes a roupa e o edredon com
um terno beijo na testa, enquanto na secretária os bips do Messenger continuavam a debitar mensagens de amigos menos
dorminhocos.
Naquele
sábado, Sofia teve de fazer horas extra, a ida ao McDonalds ficou adiada para
domingo. Aborrecidos, reclamaram de ter de ficar em casa, sem nada para fazer, a
casa fora do centro obrigava a deslocações de carro ou transporte, era a
garantia de um dia de sorna para os dois, entre o Facebook e a MTV, Francisco antevia já um dia a dormir até ao meio
dia. O avô, que voltava com o carro da revisão entrou de rompante na cozinha e
como Pai Natal em vinte e quatro de Dezembro, bateu com as mãos e chamou a
reunir:
-Vá,
vá, todos fora da cama! Vistam-se que vamos dar uma volta!
-Volta?
Onde? - Francisco estremunhado e ainda deitado suspeitou das ideias do avô,
alguma ida ao café do Vasco a aturar os amigos da sueca, por certo -Oh avô,
que ideia. Ir aonde? Fogo! -virando-se na cama, tapou a cabeça com a
almofada, ensonado.
-Vamos
ao Badoka Park! Não querem? E almoçamos lá. Vá, vá, que a vossa avó tem de sair
também um pouco, toca a vestir! Hoje vamos ver a bicharada, Margarida! -o avô Alcino era um pachola, sempre a contar
anedotas, pai de substituição, a chegada da Primavera despertava o prazer do ar
livre, iriam por Tróia, a ver o novo empreendimento.
-Tu…-a avó simulou repreendê-lo, mas ficara contente,
quando novos faziam isso muito, escapadelas de fim de semana e
piqueniques com os amigos, agora todos já avós. Meia hora depois, lá
rolavam, estrada fora. O avô tirava retratos com a Canon de modelo ultrapassado, a avó levava umas sandes, o cheiro a
pinhal e as emoções do atrelado do Badoka,
perigando com a aproximação duma avestruz alucinada, querendo bicá-los, fizeram
daquele um dia bem passado, eram uma família, apesar de tudo, Sofia, mais
ausente, compensava quando podia. Naquela noite, ao chegar a casa, Francisco ia
extenuado, mas feliz, no fundo, e até editou as fotos do passeio no Facebook e adormeceu recordando a cena
da avestruz.
No
dia seguinte, atrasado para o pequeno-almoço, ovos mexidos com bacon e compota de cereja com torradas,
Francisco abriu-se com a avó, o cheiro a café fresco já acordara o avô Alcino,
que tomava uma chávena, folheando o jornal
do dia:
-Sabes
uma coisa, avó? Esta noite tive um sonho esquisito. Imagina que sonhei que
tinhas morrido. -Francisco estava um quanto impressionado, a avó sorria:
-Ai
sim? Deixa lá, é sinal de vida, quando se sonha com mortos é sinal de viver
muitos anos! -explicou, a sabedoria popular nunca falha - Então e como
é que eu morria?
-Não
sei. Era uma coisa esquisita, eu estava de pijama numa gruta com archotes nas
paredes, e ao centro havia três caixões. Num, esticada, estava a avestruz do
Badoka. No do meio, um esqueleto, de criança, parecia. E no outro estavas tu. A
sorrir, com esse vestido que trazes hoje.
-Isso
foi a digestão mal feita. Eu também já sonhei que me saía o Euromilhões, mas
nunca saiu. Quando se sonha, é porque vai acontecer o contrário! -o avô,
na cozinha, surripiava mais uns ovos mexidos.
Francisco
foi vestir-se e saiu para o quintal, Merkel, a cadela basset seguiu-o,
brincalhona, ladrando e abanando o rabo. À tarde, e de folga, a mãe levou-os
finalmente ao shopping, a avó
prometia bolo de bolacha e profiteroles
com chocolate quente quando voltassem.
Pelas
seis, já a caminho do carro, no estacionamento do shopping, o telemóvel de Sofia tocou, era o avô Alcino:
-Sim,
pai, diga… estou a sair….eu… o quê? Oh meu Deus! Vou já para aí, pai-
Sofia parecia em pânico, um choro incontrolável saltou-lhe dos olhos,
compulsivo.
-Aconteceu
alguma coisa mãe? - Francisco ficou assustado, nunca vira a mãe assim.
-Dá
um abraço à mãe, Chico. A avó….
-A
avó o quê?
-A
avó morreu. Teve um ataque fulminante, e caiu na mesa da cozinha, estava a
fazer o bolo de chocolate. Porquê, porquê, meu Deus!
Francisco
ficou estarrecido, na véspera sonhara com aquela morte, como era possível! Ainda de manhã haviam zombado da situação, descobria agora não ser a vida
afinal eterna.Na
igreja, a avó sorria, serena, deitada naquela caixa escura rodeada de flores,
exactamente como a havia visto no sonho. Não parecia morta, mas adormecida, a
expressão do rosto denunciava que partira de bem com a vida. Talvez aborrecida
por não ter acabado o bolo de chocolate.
Um texto impressionante.Um abraço à familia.
ResponderEliminarPedro Macieira
Soube, por um amigo comum, do falecimento de sua Mãe. Deixo-lhe um abraço de conforto e, os meus sentidos pêsames.
ResponderEliminaremília reis