sábado, 23 de maio de 2020

A Ditadura do Precariado

A pandemia que avassala o mundo fez de 2020 um ano que deixou de existir em muitos campos, com destaque para o das artes performativas e dos espectáculos, pondo a nu a realidade de um sector que em 2018 contabilizava 134 mil trabalhadores de diversas áreas, artísticas e técnicas com um volume de negócios de 6,3 mil milhões de euros. Acalmada que seja a dramática situação de muitos artistas e produtores há que construir um edifício jurídico que em momentos de stress não atire milhares de pessoas para o assistencialismo cultural das esmolas do Estado, que é sujeito de deveres neste campo igualmente.
Os agentes culturais são maioritariamente artistas individuais ou pequenos grupos por vezes com uma estrutura orgânica precária, e raramente se orientam por interesses globais, a não ser em momentos de aperto. Tive essa experiência há dez anos quando com um pequeno grupo de personalidades de Sintra fui um dos promotores e fundadores da PAACS- Plataforma das Associações e Agentes Culturais de Sintra, que juntou na altura 25 grupos e associações, visando potenciar o trabalho em rede e unificar vozes no sentido da optimização e partilha de recursos e da defesa dos interesses da classe, indo dos dançarinos ao pessoal do teatro e cinema, das correntes alternativas à música de vários estilos. Durante mais de um ano, ainda funcionou, Contudo,a hesitação em dar passos resolutos no sentido de criação duma estrutura forte, não engajada a poderes públicos, partidários e fácticos, fez com que, prematuramente, ficasse pelo caminho. Um dos pontos fracos do mundo artístico é a sua atomização, e por vezes rivalidade na disputa dos magros subsídios que um Estado avaro da cultura e que para ela olha como entretenimento e com diletantismo, embora a classe artística sempre esteja disponível para as causas de solidariedade de forma pro bono, porque os artistas são o povo que canta, escreve, e em verso, música ou risos, talha a alma dos povos .
Muitos estão hoje pela fragilidade da sua situação, no limiar da sobrevivência, e há que olhar de frente e de forma estruturada o seu futuro não só imediato como, em termos de futro, a nível da proteção social efectiva, garantia de um rendimento médio, e atribuição de espaços condignos para os seus espectáculos, ensaios e encontros. Há que ser criativo, e encontrar nesta fase novos e transitórios espaços e modelos de levar a Cultura ao povo, pois nem todas as manifestações artísticas se completam só com o online ou o You Tube, há que cheirar os lugares, escutar as vozes, apreender as cores, rir e aplaudir em uníssono e em grupo experimentar a catarse que a arte a todos proporciona, e faz evoluir.
Se os espaços interiores não comportam lotação, façam-se espectáculos nas ruas, nos parques de estacionamento, nos coretos ou nos mercados. Se pode e deve haver distanciamento social nos supermercados, nas farmácias ou nos transportes públicos, porque não nesses locais, reinventando o Espaço para o adequar a este Tempo, transitório e de purgatório?
Ninguém tem culpa da pandemia, mas um Estado avaro e pouco inovador tem culpa da anemia que assola o sector cultural e o coloca à porta da sopa dos pobres.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Os historiadores eunucos.

A polémica em torno de Rui Tavares por causa da utilização dum vídeo de arquivo em que o mesmo fala da Exposição do Mundo Português, usado por um professor do EstudoemCasa, mostra como certas pessoas pensam pequenino e não sabem separar as águas, passeando atitudes ultramontanas e censórias.
Enquanto aluno de Direito, estudei por livros de Marcelo Rebelo de Sousa, então do PSD ou Vital Moreira, do PCP, e vários anos depois do 25 de Abril a referência máxima para o estudo do Direito Administrativo era ainda o Manual de Direito Administrativo do professor Marcelo Caetano, político que nunca apreciei, mas ainda hoje eminente referência da História do Direito e do Direito Público. Muitas figuras do nosso meio cultural militam ou militaram em partidos, e ao mesmo tempo foram ou são académicos brilhantes (só para citar alguns, recordo Adriano Moreira, Fernando Rosas, Freitas do Amaral, Saldanha Sanches, José Hermano Saraiva etc), todos conotados com partidos ou determinado pensamento político, e nem por isso feridos na sua independência e conhecimento científico. E então?
O conhecimento técnico não ostenta nem pode ostentar autocolante partidário na lapela, sobretudo quando a honestidade intelectual não interfere com as convicções pessoais de cada um nem é subvertida para converter os incautos. Como escreveu um autor que não me canso de invocar, Baruch Spinoza, filósofo holandês de origem portuguesa, "interessam-me os factos humanos não para aplaudi-los ou atacá-los, mas meramente para compreendê-los". A Cultura só tem uma trincheira, que é da sua promoção e afirmação pluralista, típico duma sociedade aberta que alguns insistem em coartar. Depois, cada um que aplauda ou ataque, essa a essência da democracia, não a de criar eunucos.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Do Diário do George (um qualquer George)



Chove na mente, é um dilúvio a alma, o fim, sempre ele espreitando, sinistra silhueta da esperança fugidia. Encafuado poeta de café, apátrida dos tempos, sombra envelhecida dos espaços, em silêncio calcorreio o pontão da praia, agora sem gente, cinzenta, onde alguns náufragos em terra circulam, sedentos de miragens. Recolho ao carro, e ao cúmplice rádio de tranquilizantes melodias.
É estranho este novo país desconhecido, onde não se pode abraçar um amigo, beijar uma namorada ou acariciar uma avó, raptados das nossas emoções atrás de aviltantes panos que talvez um dia sirvam para nos enrolar, como múmias nos sarcófagos, mortos por ter de deixar de ser humanos, por ousar respirar a liberdade e, sem o querer, viver capturado por um microscópico ditador, alheio a lágrimas, sorrisos e ilusões.
O mar provoca, desafia a vencer, a cavalgar a onda, ousando, e logo a seguir, uma quebra, um atávico apelo a desistir, vencidos de nós, temerosos. Os amanhãs perdem cor, pardacentos, anunciando um perturbador purgatório, entre o pesadelo e a ilusão. No leitor do carro, oiço Kurt Weil, e, como ele, suplico, onde está o caminho para o próximo whisky bar?…
Escrevo. Apago. Escrevo de novo. Rasgo, despótico. Que fazer? Dar o corpo ao inimigo? A Primavera fugiu, fugaz, em quarentena da Vida e confinamento da Alma. Volta, és nossa, és Sul, e és Sal, és o tónico deste velho e atónito Portugal!
Ululantes e fantasmagóricas hordas de conformados, a medo patrulham a Cidade, raptada e de luto. Mudaram as madrugadas, antes límpidas e ledas, ameaçadoras agora, com a promessa de castigos, cruéis e castradores, e de estivais armagedeões relampejados. Que fazer para não mais despertar, para de vez voltar ao filme onde todos são felizes, que inveja. Ah, como é puro o cheiro límpido do iodo, magnânimo e libertador.
Dedilho umas linhas para a imortalidade, esculpidas no vasto areal, ao lado observo trilhos de passos, na areia molhada. Empolga, a canção do CD, a velha Alabama Song, cantem os Doors ou David Bowie, é Portugal amarelo scotch passando em fundo, albergue de errantes, trôpego de futuro, e sem pedras de gelo. Vamos todos para Alabama e acolhamo-nos num whisky bar esperando o nirvana e acordar do pesadelo!
Num solitário quiosque, anoréticos jornais vendem insegurança e medo, intranquilos, os cardíacos relatos deste diário crepúsculo. Aconselho deixar de ler jornais. De tão abusadas, gastaram-se as palavras, analfabetos, não descobrimos novas, entre silêncios soltamos enredos, esboçamos adjectivos, melhor beber uns copos, fanfarrões talvez salvemos o mundo aí pelo quinto gin. Só o álcool-não o do tal gel- é redentor, e concubino. Amigo certo, presentear-me-à por certo com uma poética cirrose, maleita de intelectual, é o mínimo, os verdadeiros intelectuais sempre se trataram com álcool. Não morrerei de pijama, mas de fraque, que não se vai para o outro mundo de pijama, espero que no tal do Céu haja Visa, parece que não deixam levar dinheiro.
Afastando-me do paredão, posso agora pensar em novas madrugadas, com cravos brancos. Sim, quero cravos brancos sobre uma laje fria, fica bem nas fotos, com o som de Chopin em fundo, talvez o meu velho amigo Fernando me dedique uma estória das dele. Campa. Sim, quero uma campa, grunge, salpicada de cruzes entre memoriais de defuntos imortais, nada do irrespirável e tórrido crematório, que é coisa para frango assado, ou talvez para a Joana d'Arc.
Passou a Ângela no calçadão, trauteio baixinho a Alabama Song, pelo retrovisor vejo o Max sentado no banco de trás, grande Max, já partiu, e de fraque, sete outonos atrás, espera aí Max, vou a caminho!
É cruel, escrever com caneta de aparo. As palavras sangram, e impiedoso o aparo mata, invasiva arma contra as palavras vãs, com caneta de aparo e tinta preta se deviam proclamar revoluções, gritar esperanças, borrar epitáfios e apunhalar palavras errantes em confidenciais cadernos.
Cristo morreu, Marx também, e eu, francamente, não me sinto lá muito bem. São cruéis os dias, mais a merda da máscara, convoca à lassidão do corpo. E ainda hoje é quarta. O homem de Nazaré morreu numa sexta. Aninhado entre pregos de aço, ressuscitou num sábado, hora de Greenwich. Todos os dias ressuscito para tornar a morrer. Melhor ir a um copo no bar. Mas qual?
Esfíngico, o sol põe-se no horizonte, não serviu de nada hoje, fugido do Verão, o leitor no carro repete o Alabama em looping, talvez o Kurt e o Brecht queiram um bourbon. Aguarda, Max, vou já!…
Assina: um poeta das cirroses, mas das elegantes, sempre aconchegadas em copo alto e, se o Valdez fiar, perfumadas com um puro de Havana. A pandemia é uma monotonia.

terça-feira, 5 de maio de 2020

Dia Internacional da Língua Portuguesa

Hoje é o Dia Internacional da Língua Portuguesa, em tempos de lay-off, lockdown, take away, burnout, instagram stories, e outras portuguesissimas expressões. De volta dos seus laptops e tablets, fazendo download de programas e upgrade de app's, os portugueses celebram com emojis e GIF's, enquanto devoram happy meals e aguardam under stress que Bruxelas emita recovery bonds, revistos que sejam os ratings. Leiam e-books para providenciar mais royalties aos autores portugueses e aumentar a sua popularidade no ranking dos best-sellers e mainstream. Portuguese is beautifull!