Passam no próximo domingo, 10 de
Novembro, 100 anos do nascimento de Álvaro Cunhal. Intelectual interventivo e
líder carismático, dele ouvi falar pela primeira vez a 30 de Abril de 1974
quando regressou a Portugal depois dum exílio de mais de 15 anos, e, qual
Lenine, se fez fotografar ao lado dos militares que, de cravo na lapela,
acabavam de tomar o poder. Dois dias depois, tive o ensejo de o ver no histórico
1º de Maio, onde, com 14 anos e na companhia de meus pais e avô presenciei a
maior e mais generosa manifestação de alegria que alguma vez se realizou em
Portugal, e onde Cunhal, ao lado de Soares, surgiu como um dos protagonistas do
momento histórico que se viveu.
Nos anos seguintes tive ensejo de
conhecer a sua obra, os seus quadros marcadamente neo-realistas, os seus
escritos e a crença indómita no socialismo por via do materialismo histórico, e
até, sem o suspeitar, os livros que sob o bem guardado pseudónimo de Manuel
Tiago escreveu sobre as lutas dos trabalhadores e camponeses, algumas hoje
passadas para cinema e televisão. E, como compagnon
de route das esquerdas que fui
nesses anos de esperança, frequentemente o escutei nas diversas festas do Avante
a que fui, desde 1976 na antiga FIL até às memoráveis do Alto da Ajuda.
Convicto, de personalidade forte, na defesa daquilo que para ele era o desígnio
de Portugal, a caminho duma sociedade sem classes e de modelo soviético.
Em 1975, sem deixar de o escutar e
apreciar a sua vontade férrea (como hoje nos fazem falta homens da sua fibra,
face aos lacaios da troika que nos governam!) comecei a afastar-me do discurso
e prática que qual flautista de Hamelim nos quis levar para uma nova e
improvável utopia, a maior do século XX. Foi depois do caso “República”, quando as liberdades por que
tantos comunistas e resistentes lutaram antes do 25 de Abril foram postas em
causa, e a vontade popular expressa em votos nas eleições para a Constituinte
apontaram a Portugal um caminho diferente daquele que Cunhal sonhara, e que
teve um momento alto de oposição na grande manifestação da Fonte Luminosa, onde
também estive, e onde Mário Soares e Salgado Zenha encabeçaram a resistência a
um projecto de poder tutelado pela mente brilhante de Cunhal, tendo como
executantes Vasco Gonçalves e o grupo mais radical do MFA.
Com a consolidação da democracia na
sua acepção “burguesa”, Cunhal passou
a ser visto como um velho do Restelo, derrotado da História e último moicano,
sobretudo depois do colapso do “seu” mundo em 1991, após a perestroika. Não vacilou contudo quanto aos seus ideais, e não
tenho dúvida em classificá-lo como um dos mais admiráveis lutadores e
intelectuais do nosso século XX, o homem que, filho de pai burguês e aristocrata
de província, tudo trocou por uma causa, que viveu parte da vida na
clandestinidade e nas prisões de Salazar, e que delas fugiu de forma heróica e
lendária.
Homens como Álvaro Cunhal,
concorde-se ou não com eles, fazem falta a Portugal nestes dias de apagada e
vil tristeza, povoado que está o nosso mundo de gente sem coluna vertebral
eivados de boçalidade intelectual e pequenez de vistas. E, sobretudo, para,
vítimas da fome, voltarmos a de novo sonhar com uma terra sem amos. Os amanhãs
que cantam são escuros e cinzentos, a Internacional a cujo som se marchou para
o socialismo queda-se pelo sótão da História, mas chamem-se Cunhal, Agostinho
da Silva, Natália Correia ou Adriano Moreira, ainda resta a memória e o exemplo
de portugueses que souberam ser mais que a sua circunstância e marcar o seu
tempo e a do seu povo. Há sempre alguém
que resiste/ há sempre alguém que diz não.
Muito bom, gostei.
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