Emília tinha
sido despedida, com o marido entrevado depois de uma queda da grua e um filho
autista, não se pode dizer que a vida lhe sorrisse. Ainda jovem e ingénua,
depositara esperanças numa carreira de professora, desiludida, terminara na
fábrica de fogões, fazendo um trabalho rotineiro e mal pago. A fábrica faliu,
porém, deixando três meses de salário por pagar e as contas a acumular na mesa
do corredor. Morava numa casa velha que o sogro lhes havia deixado em Lourel, aziaga
terra entre dois cemitérios, costumava dizer em dias de depressão. Ainda se lhe
saísse o Euromilhões! Fielmente, jogava todas as semanas seis euros mas a sorte
nunca lhe sorrira, pão de pobre quando cai no chão é com a manteiga para baixo,
dizem os brasileiros e com razão, pensava, conformada.
Naquela
sexta-feira, jogou os seis euros do costume no café do Baptista e guardado
religiosamente o papel seguiu para casa, a tratar do jantar e do marido. No dia
seguinte ao sorteio procurou a chave sorteada no Correio da Manhã, invariavelmente sentenciando mais uma semana de
decepção. Desta vez, porém, procurando o registo na mala, não o encontrou.
Cartões, facturas para pagar, o passe, nada! Deixá-lo, não iria sair de qualquer
maneira. Lembrou-se que tinha apostado em números seguidos, 6-7-8-9-10, nas
estrelas, o 4 e 5. Conferindo a chave da semana, os números premiados eram
6-7-8-9-10, as estrelas 4 e 5, a televisão já anunciara haver apenas dois
premiados, um em Portugal outro na Bélgica, cinco milhões de euros para cada
um.Emília quase teve uma apoplexia! Eram os seus números! Perturbada, voltou a
casa e esvaziou a mala vezes sem conta, a carteira, as gavetas, até o contentor
do lixo. A sorte passara-lhe à porta e nunca veria um cêntimo do dinheiro que
mudaria a sua vida.
No dia
seguinte era feriado, Dia de Todos os Santos, pela manhã rebanhos de miúdos
ruidosos de saco de pano na mão, iam correndo as casas e cafés pedindo Pão por
Deus, ancestral tradição na busca da romã, língua-de-gato ou chocolate que
vizinhos ainda não moldados pela selva urbana ofereceriam, renovado ritual de
geração em geração. E lá iam de porta em porta, os mais velhos guiando os mais
novos, tocando as campainhas e repetindo a mágica cantilena que abriria a porta
dos presentes naquela espécie de Natal antecipado. Pão por Deus! Pão por
Deus!
Filipe, com
o Joãozinho, pela mão ia também, a mãe deixara mas na condição de ficarem
pelas redondezas, queria-os em casa ao meio-dia. De saco quase cheio, bateram à
porta da Emília, mais três casas e terminariam, para o Filipe seria a última
vez, ia fazer treze, tempo de passar o testemunho. -Pão por Deus! – iam gritando, com os os cães a
ladrar à desusada peregrinação matinal. Emília, ainda em transe com o
Euromilhões, nada contara ainda, quase em depressão, queria era sossego e
silêncio, muito menos estava com paciência para os miúdos:
-O que é que
querem daqui? Julgam que isto é a Mitra? Tomara eu ter para mim, quanto mais
para vocês estragarem. Os vossos pais que vos dêm! –reclamou,
mal-humorada, ainda em roupão e com os cabelos revoltos. E se não se vão já
embora daqui, largo-vos o cão, vão ver!
Mulher
chata, pensaram os irmãos. Pronto, minha senhora, vamos já embora!
À saída do
quintal, Joãozinho, atento, deu com os olhos num pequeno papel branco caído
atrás dum vaso de malvas. Na inocência dos oito anos, não percebeu o que fosse,
mas olhando para trás, chamou a Emília, ainda à porta, esperando que fechassem
o portão.
-Oh minha
senhora. Quer que lhe ponha este papel no lixo?
-Qual papel?
Ainda aí estão? Com um raio,
nunca mais se vão embora! –arengou, impaciente.
-Isto! -e correu a
entregar-lhe o papel achado junto ao vaso.
Milagre de
todos os santos! Era a premiada chave do Euromilhões, os mágicos números e
estrelas que a Europa procurava, os cinco milhões da felicidade. De olhos
esbugalhados, Emília soltou um grito emocionado:
-Virgem
Santíssima! Ai meu Deus que me dá um enfarte! Alberto! Alberto!
Joãozinho
não entendeu a algazarra, a mulher não só não lhes dera nada, como era maluca,
pensou, e afastou-se a ter com o irmão, a ronda do Pão por Deus estava
quase completa.
Junto à
porta, Emília abraçava o marido, a quem finalmente contou o sucedido, tanto ria
como chorava, num chorrilho de emoções incontroladas. Vendo que o pequeno João
já sumia na esquina, correu no seu encalço:
-Ó meu
filho, vem cá, não te vás embora! Deu-lhe dois, quatro beijos lambuzados, e
correu à cozinha, onde três pacotes de bolachas e um Toblerone voaram para o
saco, repentinamente pequeno-E para a semana vem cá ter comigo sem falta,
ouviste? Já tens Playstation?
Maria Emília
e o marido moram agora numa vivenda em Colares, com um jardim bem tratado pelo
senhor Isidro. O marido montou um negócio em casa, foram às Canárias de férias
e o pequeno Marco anda numa escola especial. O resto é para assegurar o futuro.
Um pequeno papel branco pode mudar muitas pequenas vidas.
Para o ano, e por alguns anos ainda, lá estará o pequeno João com o saco
de pano, patrulhando as casas daqueles
pais natais sem barba branca, enchendo o saco de línguas-de-gato e coloridos
rebuçados, tesouro acumulado proferida a
senha mágica. Pão por Deus!
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