A relação do Estado com o regime
democrático está hoje em crise, e num contexto de modernidade, a sociedade
civil procura novos paradigmas e palcos. Verifica-se que quanto mais esta se
afirma, maior número de centros de decisão difusos e campos informais de
influência social vão surgindo, mais o Estado dos partidos se afastando da
sociedade, não sabendo como se relacionar com estas novas realidades políticas,
para ele, talvez, apocalípticas... Isto, trás, contudo, novos desafios,
porquanto, sendo os novos movimentos sociais na forma menos políticos que os
antigos, (ou até raivosa e perigosamente antipolíticos) mais complexo é
integrá-los como agentes de mudança numa nova representação de democracia
representativa. Há, efectivamente, novas modalidades de representação social
que fazem a sua aparição, tendentes a desenvolver formas de reivindicação que
escapam à política tradicional, e até ao Estado, que assim, sem entender bem
ainda ao que vêem, e como surgiram tais movimentos, vive uma espécie de
esclerose democrática, bem patente na forma como lida com os movimentos de
cidadãos que incorporaram candidaturas independentes às eleições autárquicas,
ou na expressiva percentagem da abstenção, ou dos votos brancos e nulos
apurados nas eleições de 29 de Setembro, fazendo de certa forma das maiorias
expressas as maiores das minorias.
A crise actual, é antes de mais,
e acentuado pela crise económica, uma crise da democracia, proporcionada pelo
rompimento do tecido social que esta despoletou. O atomismo dos protestos no
passado recente, e a anomia de muitos deles, sobretudo nos anos de crescimento
material, retiraram às reivindicações de franja ou politicamente engajadas,
dimensão social e comunitária de relevo. Foram anos de hipertrofia da
democracia formal, burocratizada, nas suas representações, hoje esgotadas, e
que levou até agora à desmobilização dos cidadãos menos participativos, e sua
alienação política, fase em que a representação política se esgotou, e hoje,
passado esse período de dita “democracia burguesa” é interpretada pelos novos
contestatários como usurpação, os detentores do poder como meros ventríloquos,
e os espaços e instituições, semânticos lugares de exercício das liberdades.
Como escreveu Anthony Giddens, na fase da sociedade da abundância, o homem foi
encerrado “no cárcere férreo da racionalidade burocrática”, salivando ao osso
que pavlovianamente lhe foram atirando. Em Portugal, foram os anos do
cavaquismo, da Europa, da Expo-98 e do consumo desenfreado.
O que os movimentos em gestação
hoje demonstram, e aos poucos reivindicam, é um retorno da ética, face aos
delitos financeiros, o tráfico de influências e o desprezo pelo Eu, pessoal e
colectivo. Está em construção uma nova moral, ultrapassada que está a fase da
sociedade dos direitos eternos e, sacrificada, a sociedade se revolta contra a
alegada sacralidade dos deveres (da austeridade, da exclusão, da canga sem
sentido e sem esperança). Depois da democracia narcísica dos anos 90, pré-Lehman
Brothers, BRIC’s e Euro, a noção de pertença está em reconstrução, e com ela, a
refundação da ideia de democracia, atingidos que foram conceitos como a
liberdade e a perspectiva da abundância. Mas para tal ocorrer de forma
sustentada, há que avançar para um individualismo responsável, para novos
espaços de criação e partilha, que dêem sentido a um novo conceito de deveres
trazendo novas formas de empenho e de regulação social, no sentido a que Hanah
Arendt chama de “novos espaços públicos de liberdade”. E, no seu pluralismo,
não sendo a sociedade civil moderna plenamente democrática, por não assentar
num pluralismo normativo, ela sê-lo-á sobretudo, e para já, na forma de agir
comunicacional e na representação de significantes que convidam a uma nova teorização
das ideias de liberdade e democracia, moldada na pulsão entre o Poder Ser e o
Querer Ser.
A crise deixou às claras o mundo
do fragmento, em que da democracia funcional e normativa, passamos para a
pulverização das liberdades, sem que uma linha condutora ou triunfante se
desenhe ainda, fruto dos hedonismos e das ideias que a teia da liberdade
paradoxalmente criou, e que passa pela resposta a dar no futuro à seguinte
pergunta: como conciliar identidade e pluralidade, como dar carácter funcional,
por exemplo, aos protestos, aos manifestantes isolados e individualistas,
rebeldes por uma causa pessoal e egoísta (embora legítima) e aos representantes
de grupos profissionais, etários ou de facção, e dar-lhes expressão política e
rostos, unidade na diversidade? É esse o debate que se coloca nos dias que
correm. Como escreveu Karl Popper, “devemos caminhar para o desconhecido, o
incerto e o inseguro, utilizando a razão de que pudermos dispor para planear
tanto a segurança como a liberdade”
A extinção do Estado Social e a
recusa dos “mercados” em voltar ao providencial estado keynesiano, está a gerar
uma crise generalizada de descrença no sentimento do futuro, e nesse quadro, a
acção colectiva denota contornos de se focar não só nos temas económicos, mas de
estruturar uma reacção à perda da felicidade, no presente quadro de
constrangimentos sociais e políticos. Daí ter de se reinventar um novo modelo,
assente na Justiça enquanto parte duma vasta Política de Liberdades
(colectivas, funcionais e pessoais), que ofereça perspectivas de vida e não
imponha formas ou modos de a viver.
Num tal quadro, a cidadania, deve
ser concebida como um sistema que torne como estrutural o direito a ser
diferente dentro dum conjunto de direitos/deveres fundamentais de expressão da
pertença. Isso ressaltou, por exemplo, das manifestações de 15 de Setembro,
grande laboratório de experimentalismo social, donde algumas ideias se podem
retirar de como, numa sociedade aberta e na era das redes sociais, respira
(aflita e a despertar) a sociedade civil portuguesa em 2012, uma democracia
melancólica, a querer rasgar o espartilho mental entre um passado de
representações em ruptura, e um futuro de novos paradigmas, com o Homem (como
sempre, desde a caverna de Platão) como centro das coisas, reinventor da
democracia, e duma nova organicidade, compatível com estes dias de cólera.
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