Toda a noite
levara emborcando vodkas pretas, sem a mulher e na noite algarvia, Vítor só sabia onde começava, nunca onde
acabaria. Apesar da crise, as praias estavam cheias e tirando uma folga do
escritório, alugou um bungalow na
Manta Rota e instalou-se para uns dias sem jornais e sem net, no remanso da praia e dos bares ao fim da tarde. Num deles
conheceu Craig, um polícia da Irlanda do Norte, que devidamente afogado em Guiness lhe ia contando as vezes que
insurgentes de Belfast o tentaram matar, e com ele se enfrascava na happy hour. Aves raras pululavam pelas esplanadas, numa
parafernália estival: emigrantes com charutos, pedindo champanhe francês,
crianças birrentas com crocodilos insufláveis, famílias da margem sul e de
outras margens, ingleses pouco sóbrios e holandeses menos sóbrios ainda, toda a
fauna exótica ou rafeira, da grande reserva turística a que chamam Algarve.
Vítor
gostava de praia. Viajante inveterado, das Caraíbas aos mares do Sul, tudo
sulcara já, vira peixes exóticos e corais coloridos, golfinhos e cardumes
voadores, pinguins e lontras, e mar, muito, verde, azul-turquesa, imenso e
belo. Uma coisa o apavorava: tubarões. As imagens do filme de Spielberg, com
trinta anos já, assaltavam-no sempre que chegava perto da água, coisa ridícula,
mas assim era, acontecia o mesmo com os aviões. Palmilhara o mundo, mas
detestando voar, sempre temendo acidentes. O dr. Rebelo dissera-lhe ser
algo conhecido como selachofobia, o medo de tubarões, como outros têm de ratos
ou aranhas. Hipnoterapia, aconselhou. Passado o Verão, o medo sumiria, só
ressurgindo com o regresso às praias, as do Algarve, apesar de tudo, seguras, e
livres desses perigos.
Na Manta
Rota, diariamente esticada a toalha e passado o creme, umas braçadas nas águas
cálidas mais não deixavam ver senão algumas algas ou seixos, indo e vindo.
Baleias, sim, muitas, as que as dietas não resolveram, tubarões, só os da troika ou dos mercados, a esses muitas
vezes vira a barbatana, na costa e na algibeira, vorazes e trituradores.
Filipe, advogado e colega de escritório, de férias na mesma zona,
sabedor da fobia, gozava com Vítor, gritando "tubarão!" sempre que
ele ia ao banho, ao que inicialmente reagia assustado, sorrindo depois, a
verdade é que efectivamente ninguém vira nenhum, nem Vítor se afastava muito da
terra firme. Aliás, a bem ver, nem o tubarão que aterrorizara a ilha de Amity
no filme de Spielberg existiu, esse aterrador animal que irrompia nas praias da
costa leste e que tanto o angustiava, mal escutava a música que precedia o
ataque. Autoflagelando-se, vira o filme várias vezes, apavorado com aqueles
olhos negros sem vida, o ronco, sempre que as mandíbulas cravavam na vítima,
puxando-a para a água e deixando uma mancha de sangue em volta. Mas esse era um
tubarão branco, nunca visto nas costas portuguesas, só vira um nos
estúdios da Universal em Los Angeles,
lembrava-se de na altura ter fugido para o espectáculo do E.T., e como ele, ter
tido o impulso de gritar “home…”
No último
sábado de férias, como habitualmente, Vítor, Filipe e a mulher, Rute,
encontraram-se na praia, predispostos para uma manhã de sol e a leitura do Expresso na diagonal. Depois das
noitadas no Bliss e dos copos em
Albufeira, fariam um jantar no Zé do Peixe Assado, antes do regresso à crise e às derrotas do Sporting. Cansado da noite anterior, Vítor deixou-se ficar
espojado, roncando mesmo, mal os primeiros raios de sol lhe açoitaram as
costas. Ao fim de dez minutos, Filipe e Rute foram experimentar a água e
mergulhar, outro dia de sol em
perspectiva. Cinco minutos não eram decorridos quando uma algazarra junto à água
e um magote de gente denunciava ter ocorrido algo, a chegada dum barco da
pesca, pensou Vítor, sem levantar os olhos da toalha, o bando de gaivotas ululantes era
sinal de peixe, todos os dias por essa hora chegavam barcos da faina. Um grito
de mulher, gutural, fê-lo enfim despertar, e levantar a ver o que se passava, o
grupo de banhistas engrossara, e alguns apontavam na direcção do mar, para
poente. Rasgando caminho entre eles, Vítor deu com Rute aos gritos, com a mão
na cabeça, ao lado, sem sentidos, Filipe, deitado na areia. Uma poça
avermelhada jorrava-lhe da perna esquerda, à aproximação, a visão horrorosa do
pé decepado, colhido por algum objecto cortante, o motor de algum barco,
alvitrava o nadador-salvador.
-Que se passou, Rute? Meu Deus, que houve com o
Filipe?
Filipe dava
gritos e chorava, a água salgada acicatava a dor. O vendedor de bolacha
americana, um brasileiro bronzeado, vira-o entrar na água e nadar
despreocupado, não vira nenhum barco perto sequer, era estranho o sucedido. Já
as sirenes do INEM anunciavam a chegada da ambulância para o evacuar, quando um
miúdo com uma bóia apontou para o mar e desatou aos gritos:
-Tubarão! Há um tubarão na praia! Olhem ali!
Todos os
olhos se viraram para o sítio indicado e sinuosa, lá estava uma barbatana
preta, a cem metros da praia. O pânico foi geral, com várias mães com os filhos
pela mão fugindo para os lados da amurada, deixando Rute e Filipe quase sós. O
nadador salvador pasmava, nunca tal vira na Manta Rota, a Polícia
Marítima, via rádio, confirmava, um navio de guerra ao largo avistara não um,
mas três tubarões, algo que os biólogos consideravam raro e um sinal de alteração
nas migrações da espécie nesta parte do Atlântico, sinal de peixe com fartura.
Vítor ficou
branco como a cal da parede, e atarantado, entre esperar pela evacuação do
amigo, que dele zombara, e a fuga pura e simples, aguentou, quase desmaiando, e
acompanhou Rute na ambulância. Ao fundo, a perturbante barbatana do perturbante
turista marinho, aproveitando algum programa low cost, transportou-o para o filme de Spielberg, como sempre
temera, acontecia agora. A praia foi de imediato interditada, mirones com
binóculos garantiam ter já avistado uma dúzia deles, a televisão chegava para
um directo e o correspondente do Correio
da Manhã ganhava a primeira página, destronando a velha assaltada no Pingo Doce da Amora.
Prometendo não voltar à praia, após a evacuação
de Filipe, Vítor regressou a Lisboa, findas as férias, para o amigo terminadas
de forma dramática. Com o tempo, uma prótese ajudaria Filipe a andar, vítima do
atípico Verão de 2011 e dum ataque de beachjacking.
Ao chegar a casa, findas as férias, e sem comida em casa, optou por um
restaurante chinês ao fundo da rua. À entrada, um placard aconselhava a ementa de sete euros, a começar com sopa de
barbatana de tubarão….
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