Grande
negócio, comentou Guedes do Amaral com o Gregório das queijadas, toda a sua
produção de conservas fora comprada por uns industriais de Lisboa, dinheiro
vivo e na hora, coisa rara. Poderia agora expandir o negócio em Albarraque,
duns toscos pavilhões agrícolas fizera uma unidade industrial com setenta
operários, a somar ao contrato para o Brasil, os terrenos do Antunes, na
Portela, estavam debaixo de olho. Alfredo Pinto, director do Semana de Sintra juntou-se ao grupo na Periquita, vindo da Estefânia:
-Então
quer dizer que é coisa que se veja? -sondou o Júlio, o dono da pastelaria,
servindo uma ginginha com elas, os travesseiros viriam a seguir, quentinhos.
-Foi
um achado, amigo Júlio. Recebi um estafeta lá no escritório, da parte duns
engenheiros de Lisboa, queriam uma reunião. Estranhei, nunca tinha ouvido falar
neles, mas negócio é negócio, e lá fui, olhe, aquele palacete do Menino de Ouro,
em Lisboa, está a ver? Foi aí a reunião!
-Mas
quem são os tipos, afinal? -sondou o
Gregório, até poderiam ter interesse para ele.
-Um
estrangeiro que estava lá recebeu-me em nome do grupo dos tais capitalistas,
olhe, até tenho aqui um cartão - foi contando, puxando dum
cartão de visita - Marang…. Karel Marang, é isso, holandês, parece.
-Quer
dizer que está em maré de sorte, amigo Guedes - Alfredo Pinto ia passando
os olhos pelo Século, o governo de
António Maria da Silva estava em apuros, e outro se adivinhava no horizonte.
-Pois
o tal Marang fez uma encomenda grande, e até me propôs a compra da fábrica,
acho que representa um grupo estrangeiro interessado em investir cá, parece até
que grande parte dos táxis de Lisboa já lhes pertence. E pagou à cabeça, tudo em
notas de quinhentos escudos! - Guedes não revelava quanto, mas
quarenta contos a pronto numa mala já lá cantavam, tudo em notas de
quinhentos, até lhe iam saltando os olhos, quando a viu. Felizmente estava guardado, e em
segurança, no sótão da casa do Arco do Teixeira.
-E
foi muito…? -Alfredo tentava tirar
nabos do agiota, este, porém, não se descaía:
-Para
um almocinho há-de dar, amigo Pinto! Comidos os travesseiros, foram à
vida, o Guedes iria almoçar com o Antunes ao Hotel Nunes, um naco de vitela como só o velho Saraiva sabia cozinhar.
Alfredo
Pinto seguiu para Lisboa, o Semana de
Sintra estava com pouca saída, e o Sousa Lopes, do Diário de Notícias, havia prometido arranjar investidor, o almoço
seria no Grémio. Atrasado, este chegou de táxi, com a edição da manhã debaixo
do braço, tinha uma reportagem para a tarde:
-Desculpa
o atraso, Alfredo, mas nem queiras saber, está uma bronca das grossas para
rebentar! -disparou, mal tirou a gabardina, que um criado do Grémio
Literário lhe segurou, fleumático.
-Então?
O Bernardino Machado já demitiu o António Maria da Silva?
-Não,
nada de política. Pior ainda. Já ouviste falar num tal Alves dos Reis?
-Não,
nunca. Tem alguma coisa lá para Sintra?
-Esse
tipo andou a comprar acções do Banco de Portugal, mais de dez mil, parece, com
quarenta e cinco mil já lhe dava para controlar o banco. Nunca ouviste falar
dum banco que apareceu aí há pouco tempo, o Angola e Metrópole? Pois é um dos
donos. É um vivaço, ganhou dinheiro em Angola, até já nos tentou comprar o
Diário de Notícias! -excitado, o Lopes pediu vinho tinto, a história prometia não ficar
por ali - Consta que a mulher anda carregada de jóias compradas em Paris,
fortuna repentina feita em África, sabes…
-Sim,
mas o que é que isso tem de anormal?
– Pinto pensava ser outra coisa, o novo hospital de Sintra, que não andava, preocupava-o
mais.
-Pois
parece que está metido numa tramóia, e das grandes! Descobriu-se
que esse tal Alves dos Reis arranjou um contrato fictício, reconhecido no
notário, e falsificou as assinaturas dos administradores do Banco de Portugal.
Com uns cúmplices estrangeiros dirigiu-se à Waterlow & Sons Limited, a casa
impressora do Banco de Portugal, na posse dum documento de encomenda
falsificado, e mandou imprimir duzentas mil notas de
quinhentos escudos, aquelas com a efígie do Vasco da Gama, sabes, uma coisa do
camando, é preciso ter lata!
-Então, e o que é que ele fez ao dinheiro?
-Parece
que anda por aí em circulação desde Fevereiro, dizem até que terá sido com ele
que abriu o banco. Olha, tenho aqui o nome dos cúmplices dele:
um tal José Bandeira, irmão do nosso embaixador na Holanda, um alemão, Adolph
Hennies, Karel Marang, um holandês….
-Espera
aí! -atalhou o Pinto - Karel quê?
-Marang.
Porquê, conheces? - Sousa Lopes pareceu surpreso por o Pinto reconhecer o
nome.
A
conversa da manhã na Periquita e a história da mala com notas de quinhentos do
Guedes surgiu-lhe de repente, agora interessado em escutar o resto:
-Não,
não, continua… o Lopes, pedindo um café, rematou a história:
-Aliás,
como era possível o Banco de Angola e Metrópole conceder empréstimos a taxas de
juro tão baixas sem receber depósitos? Chegou a pensar-se que era uma táctica dos
alemães para obterem vantagens em Angola. Parece que o Vasconcelos, do "Século" descobriu uma nota falsificada e com o mesmo número de série na delegação do
banco no Porto, e consta que há muitas mais, é em grande escala a operação, estás a
ver, se andarem por aí as duzentas mil!
A
edição de 7 de Dezembro prometia. Um telefonema para o Lopes interrompeu o
almoço, aliás quase concluído, a conversa sobre o investidor para o jornal
ficaria adiada:
-Tenho
de ir, é da redacção! Parece que prenderam o Alves dos Reis a bordo do
"Adolph Woerman"! -Chapéu
e gabardina, e o Lopes correu para o Governo Civil, onde o detido aguardava,
era perto, “furo” garantido.
De
volta a Sintra, e ainda incrédulo com o desplante dos burlões, Alfredo procurou
o Guedes em casa, pondo-o ao corrente dos acontecimentos, poderia ter caído num
conto do vigário. Apavorado, este correu para o sótão da casa e verificou as
notas que Marang lhe entregara dentro da mala cartonada. Eram das tais! O
negócio chorudo ficava agora em causa, quarenta prestimosos contos de réis.
Raciocinando rápido, chamou um carro de praça, correu ao encontro do Antunes e
propôs-lhe a compra a pronto dos terrenos da Portela, quarenta contos, era
pegar ou largar. Surpreso, o outro hesitou, mas à vista das notas de quinhentos,
aceitou sem pestanejar e Guedes do Amaral suspirou de alívio, felizmente não perdera tudo.
Pela
tarde de 6 de Dezembro, o Banco de Portugal ordenou a retirada de circulação de
todas as notas de quinhentos escudos e no dia seguinte o Diário de Notícias fazia manchete com a burla monumental. Alfredo
Pinto, com o jornal debaixo do braço, depois dum café na Periquita foi a casa
do Guedes, a preciosa informação valia bem um pequeno patrocínio para o Semana de Sintra.
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