As escarpas de Sintra
lembravam-lhe a Irlanda natal. Marechal de Sua Majestade em terras lusas,
William Carr Beresford, comandante em chefe na ausência do
Príncipe Regente, era senhor de Portugal, onde levava já onze agitados anos.
Toulon, Índia, Egipto, Buenos Aires, pelo Império Britânico se havia desdobrado
em perigosas missões, mas desde que em 1807 ocupara a Madeira e aí aprendera
português, viu-se apontado como o homem da Coroa inglesa num país abandonado
pelo seu governo. Corpulento, rosto irregular e sem o olho esquerdo,
vazado por um tiro, marechal do exército português desde 1809, nomeado pelo
Conselho de Regência, Beresford aproveitara a reorganização das forças
militares para nelas introduzir os métodos do exército britânico. Era um
organizador. Criara depósitos de recrutamento em Peniche, Mafra e
Salvaterra, distribuíra novas armas e equipamentos, levara o exército, de
inspiração prussiana, a manobrar à inglesa. Metódico, introduziu as ordens do
dia para informar o exército, e apurar a disciplina: tanto se lhe conheciam
mandatos de prisão ou para execuções sumárias, como louvores e promoções por
mérito.
Nesse dia, 19 de Outubro, o spleen
de homem das ilhas apossou-se-lhe do espírito, perturbado com os eventos da
véspera, e saiu a cavalo para espairecer, a nortada do Cabo da Roca
transportou-o para os Cliffs of Moher da sua Irlanda, a urze e arribas
recordavam-lhe o burren xistoso e solitário da cinzenta Galway. A Smighton
ordenou que ficasse na Junqueira, conspirava-se depois do enforcamento e
receava-se subversão. Se meses atrás era o saudado libertador das hordas de
Bonaparte, agora, após a execução do general Gomes Freire de Andrade, o povo já
não estava com ele, acabada a guerra nada justificava a permanência dos
ingleses. D.João VI não se decidia a voltar, e o povo reclamava por a um ocupante suceder agora outro.
Gomes Freire, antigo herói da
Crimeia, oficial no exército de Potemkin e resistente de Schwensk, quando canhões
suecos atacaram a marinha russa, regressara a Portugal após a queda de
Napoleão. Grão-Mestre da Maçonaria, acusado de conspirar contra o rei, fora na véspera enforcado por traição à pátria, junto com mais
implicados, o julgamento fora polémico e tortuoso.
Caminhava junto da
falésia quando o trote de um cavalo denunciou a chegada apressada de Smighton.
O ajudante de campo assistira ao enforcamento e vinha contar os detalhes,
Beresford, desviando o olhar das ondas furiosas, perguntou por novidades:
-Well?... Como correu?
-Já está, Sir, usou-se
baraço e pregão, como ordenava a sentença. Mas foi estranho. No momento em que
a corda caiu em S. Julião da Barra, fez-se uma escuridão súbita no Bugio, e as
gaivotas gritaram lancinantes. Não deixou de ser perturbador, parecia um sinal.
Angustiado, Beresford pensou se
não fora um erro, a execução. O general era popular, havia pela certa
criado um mártir. E logo à mão dos ingleses, os velhos aliados. Mas Gomes
Freire conspirara, acusando o rei de déspota, chamando ao açougue do precário Império, assim se referira ao
recrutamento para os combates pela posse de Montevideu, e para esmagar a
insurreição no Pernambuco. A Beresford apelidara de ridículo aventureiro e
desabonado comandante, tudo concorrera para esse desfecho. Ainda cansado do trote, Smighton continuou:
-Na assistência estava o
primo, Miguel Pereira Forjaz. Andrade olhou-o, mas nada disse. Os outros onze
foram executados no Campo de Santana. Rezaram, e aguentaram firmes. É um
desperdício, marechal, estes portugueses não têm remédio, o país está em ruínas
e eles digladiam-se uns com os outros.
-Problema deles, Smighton- rosnou
o marechal, abrigando-se da nortada, que agora açoitava forte-
problema deles!
Beresford soubera da conspiração
pelo Visconde de Santarém. Documentos apreendidos mostraram que estava em marcha um
movimento cuja primeira fase era a criação de núcleos por todo o país. A
decisão foi a de apresentar a documentação à Regência, que se assegurou do
apoio do General Paula Leite, encarregue do governo das Armas da Corte, o qual
emitiu ordens de prisão contra Gomes Freire e outros oficiais e civis. Antes de
ser preso, Gomes Freire de Andrade ao notar a movimentação de tropas
junto à sua casa, pensou mesmo estar a revolução em marcha, fardou-se e
colocou as condecorações, até que lhe entraram em casa e foi dada ordem de prisão.
Escurecendo, voltou a Lisboa, a noite
luarenta de Outubro acompanharia a viagem do irlandês. Sentindo-se em Sintra como em casa, percebeu que nesse dia uma página
se virara e não seria a nortada doravante o único vento a soprar.
Três meses após as execuções,
instalou-se no Porto o Sinédrio, por iniciativa de Manuel Fernandes Thomaz e
Ferreira Borges, e o movimento liberal adquiriu consistência e coerência.Com o
tempo, e perante a degradação nas ruas, Beresford foi ao Rio de Janeiro
reclamar mais poderes, D. João VI concedeu-lhos. Regressou a Portugal, mas já
não logrou desembarcar. No dia da chegada, ocorreu o pronunciamento. Era 24
de Agosto de 1820, e a Junta Provisional de Lisboa, que substituíra a Junta dos
Governadores, não autorizou que desembarcasse.
Nessa noite, disse adeus
a Portugal. Era noite para ele, um imenso e esperançoso luar despontava para um
pequeno povo ao sul da Europa. Por quanto tempo?
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