Há 516 anos, em 5 de Dezembro de 1496, D. Manuel I assinou o decreto que expulsava os judeus de Portugal, concedendo-lhes prazo até 31 de Outubro de 1497 para que deixassem o país. O rei permitiu que optassem pela conversão ou desterro, esperando assim que muitos se baptizassem, mas a grande maioria optou por sair. Nesta data, uma “estória” sintrense a recordar esses dias de intolerância.
O Destino infausto de Salomão Ben Crespe
Salomão Ben Crespe, cinquenta e cinco anos, esguio e parco de carnes, diariamente cumpria o trajecto entre a sinagoga de Sintra, da qual era rabino, e a R. da Pendôa, onde tinha casa e ofício de sapateiro. A sinagoga fora permitida por aforamento, em 1407, e apesar de tentativas para alargar a judiaria, D. Afonso V ordenara que apenas pudesse ser usada a sua porta como local de comércio, estando aos hebreus vedado vender ou comprar para lá dela, onde, intolerantes, os cristãos velhos denunciavam com frequência as crianças marranas que brincavam na igreja de S. Pedro de Canaferrim, em claro desrespeito por solo sagrado.
Em Espanha, havia ocorrido a expulsão dos irmãos, valera na altura a tolerância de D. João, que mandou montar acampamentos junto à raia para receber os sefarditas fugidos. No entanto, só era permitido ficar por oito meses, e pagando taxas a El-Rei. Nesse tempo, famílias judaicas em Sintra eram já algumas, sapateiros, alfaiates e ferreiros, sobretudo, Jacob de Baiona e Abraão Ruivo haviam sido cidadãos estimados, e Salomão Palaegno um dos principais mercadores. Salomão ia amenizando a vida com a leitura dos Livros Sagrados na sinagoga da vila, com duas menorahs em prata como único adorno. A foragidos de Espanha havia já alojado em sua casa, acossados pela maldição do sangue dito impuro, e pela infelicidade de serem felizes nos negócios.
Um dia, corria o Dezembro de 1496, a vila foi acordada com a notícia de um édito real. El-Rei D. Manuel decretava a conversão forçada dos filhos de Israel, promessa feita à noiva espanhola, buscassem a purificação pelo baptismo e mostrar-se-ia magnânimo. Salomão reuniu as famílias, assustadas, no terreiro, a plebe pedia sangue. Pela usura haviam porfiado, pois que pagassem, semíticos herdeiros de Caifás, que matara Nosso Senhor Jesus Cristo. Na igreja de S. Martinho, frei Gonçalo do Rosário levou os tempos seguintes acicatando a conversão em homilias incendiadas, marranos para bem longe ou para junto dos gafos de S. Pedro, exigia, em tom exaltado.
A vila passava nesses dias por seca prolongada, o que nas igrejas era justificado com a má influência dos judeus, o Senhor castigava o convívio com os pecadores, exangue de justiça que apaziguasse os elementos, e por tal pecado encolerizado com Sintra. As pestes de anos anteriores eram sinal de ira divina e assim, nas semanas seguintes, oficiais do Paço correram ruas e casas curando de saber quem se mostrava temente a Deus e ao Santo Padre, ou labaredas purificadoras se encarregariam dos mais resilientes.
Preocupado, Salomão juntou o povo na sinagoga. Velhos recitando salmos, filhos assustados agarrando as saias das mães, com fé entoaram os cânticos que os filhos de Moisés e Salomão repetiam desde que a terra do leite e do mel fora alcançada, essa Terra Prometida bem longe desta, agora funesta e madrasta. Com o tempo, alguns converteram-se. Era o fogo ou a vida, Frei Gonçalo somava baptismos, no momento da água cair, fechavam os olhos e rezavam pelo povo de Israel. Muitas famílias tentaram fugir, mas, alertado, o rei mandou fechar-lhes os portos. A Rute de Córdova arrancaram os filhos, para serem educados como cristãos, os que restaram passaram a ser espectros silenciosos, arrastando como que uma lepra disfarçada, onde só no silêncio os corações eram livres.
Amargurado, Salomão abandonou Sintra e retirou-se para Lisboa, onde nos anos seguintes tomou ofício de alfaiate no Rossio, perto do Hospital de Todos os Santos.
Dez anos passaram, e 1506 chegou flagelado pela peste. Um dia de Abril, celebravam os cristãos velhos a Semana Santa, quando decorria igualmente o Pesach hebraico, as igrejas encheram-se pedindo pelo fim da praga e redenção das almas, enquanto frades inflamados vendiam indulgências. Na igreja de S. Domingos, onde dominicanos assanhados peroravam homilias contra os males do reino e os seus causadores, alguém julgou ver sinais divinos num crucifixo junto a uma capela, em comoção anunciando um milagre e chamando a rezar com fervor. Um cristão-novo, mais sereno arrefeceu os ânimos, para ele mais não seria que uma candeia acesa ao lado do crucifixo.
Reconhecido como marrano, a plebe, enfurecida e ciente dum milagre, lançou-se sobre o herege matando-o, acossada pelos dominicanos, perseguiu a eito dentro e fora do templo todos os desnaturados e infiéis à lei de Deus.
Metido com os seus pensamentos, Salomão Ben Crespe passava a essa hora a caminho de casa. Vergado pela idade e desgostos da vida e virando-se para o lado da igreja de S. Domingos, alertado pelo ruído, viu vir em direcção a si um grupo de exacerbados populares, acicatando: Mata! Mata! Ainda olhou em volta, pensando ser outrem o alvo de tal raiva, quando agarrando-o pelos cabelos o arrastaram pela terra pejada de excrementos de cavalo, golpeando e pontapeando, como se a cada pontapé uma chaga de Cristo fosse curada, e o reino dos Céus ficasse garantido. Possesso, junto a si um grupo espancava três crianças, arrancadas às mães e atiradas para uma pilha de lenha que logo se armou, numa guincharia própria de matança no açougue.
Salomão
fechou os olhos, olhou para o céu e sorriu, sereno, deixando que o calor
libertador do madeiro lhe queimasse a carne e consumisse o corpo. Preservada
para a eternidade, a alma descansaria agora, o Deus de Israel não o iria
abandonar. Até 21 de Abril duraria a sanha, sanguinária e atroz. Nesses dias do
ano de 1506 da era de nosso senhor D. Manuel, venturoso rei de Portugal, o fumo
da perfídia e o esturricado cheiro de justiça enegreciam a capital dum Império
onde o Sol nunca se punha, mas as trevas não largavam.
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