A 4 de Dezembro de 1980 o país estava em efervescência face à antevisão duma eleição
presidencial a 7, contrapondo o general Ramalho Eanes, candidato incumbente à
esquerda (depois de o ter sido à direita em 1976) e o general Soares Carneiro,
apoiado pela AD, então no governo. Recordo o calor da luta política desses dias
e a forma extremada e ruidosa como a campanha decorreu. Terceiranista de
Direito, na faculdade me confrontava diariamente com adeptos das duas
candidaturas, muitos hoje veteranos da política, e via como o primeiro ministro
Sá Carneiro forçava a nota no sentido de vir a haver “um presidente, um
governo, uma maioria”, o desígnio para o seu projecto de mudança política.
Nessa noite, com um tio e amigos, estava no Rossio, onde iria encerrar a campanha
de Ramalho Eanes, e recordo bem o atraso que o comício levava, e a dramática
comunicação que um circunspecto Fialho Gouveia fez do acidente de Camarate,
ocorrido minutos antes e com que de imediato encerrou o evento. Para uns, foi a
estupefacção, e o dispersar, em busca de notícias, para outros, apanhados pelo
clima de fanatismo que por esses dias contagiara as candidaturas, foi a
explosão de um irracional e indisfarçável contentamento, logo desaguado nas
cervejarias da Baixa, inventando piadas de mau gosto em torno do infausto
acontecimento. Os dias que se seguiram, foram de exacerbação, com as mais
variadas teorias da conspiração vindo ao de cima (e ainda hoje) e o funeral,
que acompanhei entre a Av. da República e o Alto de S.João, num clima de arrebatamento
e grande tensão, em que qualquer frase solta ou manifestação equívoca era
motivo para reacções epidérmicas, quer de anticomunismo primário por alguns no
cortejo, quer de repúdio por Sá Carneiro, por mirones ou motoristas da Carris,
conotados à esquerda.
Francisco Sá
Carneiro, nos 6 anos que esteve na ribalta política, entre 1974 e 1980, nunca
foi um homem de consensos, mais facilmente clarificando posições com rupturas
provocadas que com acordos sibilinos. Viveu intensamente a sua vida pessoal e
política, e foi, com Mário Soares e Álvaro Cunhal, um dos três pais fundadores
do actual regime. Morreu prematuramente, e com o seu nome se baptizaram ruas,
alamedas e aeroportos, inauguraram bustos e estátuas, do seu património
político se reclamam ainda hoje muitos aprendizes de feiticeiro que por aí
pululam. Nunca fui seu eleitor, nessa época mais virado para a revolução que
para a reforma, confesso. Contudo, vendo a qualidade e consistência dos
protagonistas políticos de hoje, há que reconhecer que o recrutamento do
pessoal político nestas três décadas sofreu uma depreciação em qualidade, e que
o tempo das grandes causas já lá vai, diluído na vil necessidade de sobreviver
à troika e sem um rasgo de esperança ou desafio que se vislumbre neste Portugal
intervencionado. Se fosse vivo, suponho que políticos de segunda como Cavaco
Silva nunca teriam tido hipótese de ir rodar o carro à Figueira da Foz, e os
ciclos de paz podre que se viveram nestes anos teriam sido muitas vezes
abanados pela irreverência e tenacidade de Sá Carneiro, homem de causas
precocemente desaparecido. A morte não refaz a História, mas é sempre um aviso
para um balançar de forças ou uma mudança de rumo. Entre nós, nunca saberemos
como seria, mas ou me engano muito, ou nunca Sá Carneiro terminaria os seus
dias de pantufas ou calado a escrever as memórias, como homem duma estirpe da
qual, à esquerda ou à direita, muita falta há hoje.
Não foi Fialho Gouveia que informou o acidente em primeira mão. Foi Raul Durão.
ResponderEliminarNuma segunda leitura, penso que se estará a referir ao comício em si, quando eu me estou a reportar à notícia dada pela televisão. As minhas desculpas.
ResponderEliminarSim, reporto-me ao comício no Rossio
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