Poeirento e
ruidoso, assim achou Lady Jackson o
tal Larmanjat, no qual, embarcando nas portas de Lisboa, partiu em visita
a Sintra. A viagem duraria duas horas, com paragem para descanso e
abastecimento de água, 550 réis, um bilhete em 1ª classe. O mecanismo
assentava numa via com um só carril, ladeado por duas passadeiras de madeira.
Para tornar o conjunto estável, tanto o carril como as passadeiras estavam
pregados a travessas, por meio de cavilhas de ferro, com as locomotivas munidas
de rodas centrais e laterais, rodando umas sobre o carril e outras sobre as
passadeiras. Ideia de Saldanha, que vira uma coisa parecida em França e por cá
a introduziu em 1871.
Catherine, Lady Jackson, viúva de Sir George
Jackson, vinha à descoberta da fair
Lusitania, Maio era o melhor mês, por causa do calor, recomendara o seu
editor, em Paris. Tomando lugar na carruagem, observou os passageiros que
consigo viajariam em primeira classe: um inglês, Mr. Galway, botânico de Durham, Cosette Mignon, uma corista
francesa e o seu acompanhante, M.Vendôme, um médico, ainda jovem, Gregório de
Almeida, com consultório em Sintra, segundo apurou, e os príncipes Cyrllovitch,
Vladimir e Maria, de visita a Portugal, seriam hóspedes da condessa d’Edla em
Sintra. Uma carruagem fora por ela posta à sua disposição em Lisboa, mas
dispensaram-na, preferindo viajar naquela maravilha do progresso. Na outra
carruagem viajavam os criados, soldados aboletados no Paço de Sintra, e algumas
colarejas, ainda a medo, que o receio de descarrilamentos afastava o povo,
receoso da máquina infernal.
Lady Jackson,
vistosa viúva, remetida a criada para a 2ª classe, de imediato socializou com
os demais. O cheiro a perfume barato de mademoiselle
Cosette arrancou-lhe um sorriso amarelado, o acompanhante, que lhe segurava a
mão, mais parecia pai que marido, uma amásia, por certo. Já o médico,
pareceu-lhe simpático, ultimava o consultório em Sintra. Nem sempre os doentes
eram abastados, umas galinhas para a canja e couves de Almargem compensariam
nos primeiros tempos. Com os príncipes pouco falou, não percebiam nenhuma
língua civilizada, uma vénia discreta e pouco mais. Mr.Galway era o mais falador, de visita ao wonderful palace do seu conterrâneo, Mr. Cook, o visconde de Monserrate, a fama duns jardins mais belos
que os da Babilónia tiravam-no do Surrey, aventurando-se nos confins da Europa.
Um fala-barato, pensou, com duas malas castanhas, o nariz avermelhado rematado
por lunetas redondas.
O countryside era gorgeous, salpicado de vinhas e pomares, paisanos em burros e
mulheres trabalhando no campo. Uma só estrada, escalavrada, ligava a capital e
o resort, famoso depois que o rei
viúvo e a sua morganática condessa por lá passaram a morar parte do ano. Posta
uma hora de viagem, a primeira paragem, num lugarejo poeirento chamado
Porcalhota, tempo para apear e uma pausa de meia hora. Catherine chamou por
Maude, a criada, e saindo por uns minutos, aventurou-se a experimentar um
deslavado capilé que boçais aguadeiros vendiam junto a uma árvore, junto à
carruagem, campónios vendiam cestos e atoalhados, queijadas e fruta fresca. Os
demais passageiros também saíram a refrescar-se um pouco, uma hora mais e
chegariam, felizmente Sintra seria mais fresca, arrefecia à noite, haviam dito
em Lisboa.
Retomados
lugares na carruagem, só M. Vendôme tardava, a comprar fruta para o seu petit chou. Mr. Galway acabou comprando um cesto de vime a um camponês, muito
étnico, comentou, divertido, transportando-o com algum cuidado. Alguns momentos
passados, a princesa Cyrllovitch pareceu a Catherine irritada, chamando em
russo por um valete que seguia na 2ª classe. Depois de alguma agitação, que
atrasou a saída, soube-se que desaparecera uma gargantilha dum estojo da
princesa, trazida propositadamente para a recepção no Chalet da Pena. Não havia polícia por perto, chocado, Mr. Galway aproximou-se, limpando o
suor:
-Que coisa horrível! Como é possível que num lugar
onde apenas viajam cavalheiros e pessoas de bem aconteça uma coisa destas? Isto
é pior que Constantinopla, I say!
Catherine
aproximou-se da princesa, a acalmá-la, enquanto Cosette e M. Vendôme ajudavam a
reconstituir os passos dos vários passageiros durante a paragem. A não ser que
algum larápio tivesse vindo da 2ª classe, de cuja porta o revisor nunca se
tinha afastado, só entre um deles poderia estar o ladrão. Intrigada, perguntou
ao médico se dera por algo estranho, mas este, enterrado num tratado de
farmacopeia, nada vira, só queria era chegar a Sintra, que o burro para o
Arraçário ainda levava meia hora. Curiosa, Lady
Jackson reparou que Mr. Galway
tentava encobrir com as pernas o cesto comprado minutos antes, parecendo
nervoso.
-Mr. Galway, está com medo que lhe roubem
alguma preciosidade egípcia? -ironizou, sagaz.
-Well, eu…, não, não Lady Jackson, foi lapso dos seus
olhos, por certo, a claridade destes países do Sul altera a sensibilidade da
vista, sabe, eu…
-Está assim porque o senhor roubou as jóias da
princesa, n’est-ce pas? -atalhou
M.Vendôme de rompante, apontando-lhe a bengala e encostando-o contra a janela.
-What? How dare you!- Galway ruborizou como um tomate, visivelmente
nervoso.
-Un moment! Sou Claude Vendôme, da polícia francesa,
messieurs!- apresentou-se, tirando
delicadamente o chapéu - e esta é a minha
colaboradora, mademoiselle Nadine. Este senhor frente a vós, é nada mais nada
menos que Walter Pickwick, um conhecido ladrão de jóias inglês. Desde Paris que
lhe vimos no rasto!
Todos pasmaram
e até o Dr. Gregório momentaneamente parou a leitura do compêndio. Parecia um
teatro da R. dos Condes, pensou. Vendôme pegou no cesto de vime e abrindo-o,
por baixo dum lenço, lá estava a gargantilha. A princesa suspirou de alívio,
enquanto o valete do príncipe Cyrllovitch de imediato imobilizou o inglês com
uma arma.
-Mas como pôde aperceber-se de tudo, caro senhor? -perguntou o príncipe Vladimir, num francês
irreconhecível - se saímos todos ao mesmo
tempo da carruagem?
-Aí é que está, Excelência. Quando saímos,
reparei que discretamente o senhor Galway ficou para trás, e num ápice sacou da
jóia e lançou-a pela janela, para um descampado do lado oposto ao da gare. Uma
vez lá fora, comprou o cesto, recolheu a jóia discretamente, e entrou ao mesmo
tempo que os outros com o souvenir na mão, dando a ilusão de ter estado sempre
com o grupo. Ninguém suspeitaria! Ele sabia da visita dos príncipes a Sintra, e
é conhecida a riqueza das jóias da princesa, a suposta amizade com o senhor
visconde de Monserrate afastaria qualquer suspeita sobre si!
-Mas diga-me, senhor Vendôme, e como soube que ele
tinha a jóia com ele? -questionou Lady Jackson.
-Quando saímos, segui-o, simulando ir comprar
fruta para a Cosette- alias Nadine- e vi-o recolher a gargantilha e ainda ter
tempo de tomar um capilé de limão com os outros. Voilá!
-Fruta que não chegou a comprar, pois não, senhor
Vendôme? - Lady Jackson, perspicaz, também
desconfiara de Vendôme, pois a dita fruta nunca entrou na carruagem. Era ela
quem devia ser polícia, pensou.
Em Sintra, onde
D. Fernando e a condessa d’Edla aguardavam os príncipes, Galway, aliás
Pickwick, foi conduzido à cadeia. Mais tarde seria transferido para Lisboa, e
depois para Paris, escoltado por Vendôme e Nadine. Lady Jackson, passadas as peripécias, lá se deleitou com Sintra e
seus pitorescos vales. Mais tarde deixaria as suas impressões num livro que o
seu editor entregou para traduzir a um tal Camilo Castelo Branco. Gregório de
Almeida viria a ser um dos mais respeitados médicos de Sintra, pai dos pobres e
filantropo. O Larmanjat, esse, duraria ainda mais doze anos, rasgando a
planície aos solavancos, com paragens em
que empoeirados viajantes se saciavam com capilés de limão e comprando cestos
de vime.
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