Prestável, o groom do Hotel Borges abriu a porta, posto o que o vulto de sobretudo e chapéu preto perguntou pela hóspede do 308. O pai ou um tio, pensou. Ar pesado e chapéu enterrado, um carro ficou esperando à porta da Brasileira. Era sábado e Lisboa dormia, com as famílias a banhos em Sintra e na Parede. Contactada pelo telefone, uma voz mandou subir o visitante que trazia uma garrafa, um vinho do Dão, descortinou o groom de soslaio, antes de o ver entrar no ascensor para o segundo piso.Com o coração a palpitar, Mercedes abriu a porta, olhando a ver se havia alguém no corredor e mandou entrar, segurando-lhe o sobretudo e chapéu. Confidenciara a António Ferro o desejo de o conhecer pessoalmente, e ele correspondia, numa altura que a Garnier não o largava um segundo. Raramente tinha encontros mundanos, eremitando no Estoril ou em S. Bento, mas os agradáveis passeios com a francesa no Vimieiro haviam-lhe devolvido alguma juventude, comprara mesmo um fato de linho, e botas novas. Terminado um chá com Christine, a carta ardente da frágil admiradora levou-o directo para o Chiado para aí terminar o sábado.
Mercedes Feijó já lhe havia escrito exaltadas cartas de apoio, que, sem responder, guardara expectante. O doutor Salazar, já nos sessenta, provocava-lhe fascínio, os cabelos esbranquiçados conferiam-lhe o ar fascinante e seguro de um anjo da guarda, protector e vigilante. Recatado mas não abstinente, cedia agora à terrena e carnal tentação de macho. Os mexericos sobre a sua misoginia divertiam-no, lembrando divertido a sua primeira vez, seminarista em Coimbra, com a Felismina. O Manuel, hoje cardeal, ficara de guarda, enquanto ardendo em fé penetrava os húmidos desígnios de Deus. Mercedes trouxe dois copos e sentou-se a seu lado na poltrona, enquanto, tirado o casaco, ele abria a garrafa:
-Então a Mercedes costuma escrever? Saiu ao seu pai por esse lado, mas no resto é a sua mãe tal e qual- galanteou o visitante, brindando, e recordando a sueca, agora viúva de António Feijó.Leitão de Barros apesar de ter olhos apenas para os cenógrafos da Tóbis, gabara-lhe a beleza num jantar da União Nacional.
Do quarto contíguo chegou Mercedes, entretanto, vaporosa, exibindo a lingerie negra e sedosa, um soutien rendado realçando os generosos seios, e pronta a, em ditadura governá-lo agora. Salazar sorriu, com o ar seráfico de sacristão em dia de procissão, ela envolveu-o e puxou-o para a cama. Já aliviado do fato e das ceroulas de linho- afinal ele também usava, zombou Mercedes, gulosa - o dedicado servidor da pátria virava agora obediente servo, possuído por mãos providenciais e aveludadas. Na vizinha PIDE e à mesma hora, outro servo era dominado também, mas por fogosas e menos aveludadas mãos.
Uma hora mais tarde, com o chapéu enterrado, saiu do hotel, em silêncio, deixando o groom a olhar de lado, avaro, o velho nem um centavo deixara. Mercedes, esfomeada e satisfeita, ligou para a recepção, quase de seguida, a encomendar uma revigorante ceia, a Almira rebentaria, quando lhe contasse, à hora do chá, na Ferrari.
No dia seguinte, ainda o baton vermelho e a pele de Mercedes se lhe não desvanecera, António, solene e patriarcal, discursava num Encontro Nacional de Professores de Moral: “Portugueses: Ensinai a vossos filhos o trabalho, ensinai a vossas filhas a modéstia. E se não poderdes fazer deles santos, fazei deles ao menos cristãos”.
Cristão, e abnegado santo, condestável da castidade, no sábado seguinte de novo o anjo de Portugal voltaria à sacristia do Borges, onde, peregrino, acenderia nova vela…
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