-A desobediência civil é um direito dos cidadãos,
reprimir é encarcerar a consciência, senhor agente. Palavras de Gandhi, já
ouviu falar, ao menos? –explicou o Saraiva a um atávico polícia de bigode, ao ser libertado da
prisão onde passara a noite com colegas,
após um protesto contra a troika.
Manifestando-se irados, haviam sido removidos depois dum protesto frente à Assembleia, a força ganha com o engrossar de
apoiantes levara-os a atear fogueiras, ameaçando dali não sair. O velho Saraiva,
professor de Desenho, à volta dos sessenta, e mandado para a mobilidade, era o
mais enérgico, nos anos setenta activo contra a repressão e agora contra a
destruição das carreiras. Parando para o pequeno-almoço num café, a recuperar
da noite no calabouço, retomaram a diatribe contra o poder, esse velho e
familiar inimigo, comiciando entre meias de leite e cafés duplos:
-Um homem não deve desistir da sua consciência
nem um único instante, pois senão para que é que ela serve? Devemos ser homens, nunca súbditos, amigos! Não podemos meter o respeito pela
lei ao mesmo nível do respeito pelos direitos. A única obrigação que temos, é
fazer a qualquer momento aquilo que julgamos certo. Costumava-se dizer que uma
corporação só por si não tem consciência, mas uma corporação de homens
conscienciosos já passa a ser uma corporação com consciência! –arengou o
Saraiva, dando uma passa no cigarro. O Bruno, professor de História, foi
desfiando, também:
- Sabem, enquanto estive naquela
espelunca, fui observando as paredes e as grades, e não pude deixar de perceber
a idiotice de uma instituição que nos trata como carne e osso
apenas. Eles têm uma muralha mais difícil de vencer antes de conseguirem ser
tão livres quanto nós - as nossas consciências! Nem por um momento me senti
preso, sabem, as paredes são um desperdício. Não há paredes que
confinem a força indomável dum homem livre!
No
escaparate dum quiosque em frente, noticiavam-se escaramuças em Atenas, e até
em Roma, Lisboa restolhava já nas ruas também, após o sussurro nos cafés e nos
empregos. O Telmo, de Matemática, orgulhoso por ter sido preso, teve uma tirada
que a todos agradou:
-“Anima-te por teres de suportar as
injustiças; a verdadeira desgraça consiste em cometê-las.", dizia o
Pitágoras. E maior violência não haverá que a violência das amarras, de fazer
dos homens servos, da opinião rebeldia, ou da diferença ofensa? Onde está a
democracia? Somos homens ou somos escravos?
-Meu caro, a democracia é algo que se tem de
refundar todos os dias. Porque sendo a tentação do poder o seu maior inimigo,
impõe-se mantê-la montando guarda às consciências, e tendo sempre como fronteira
estreita a ignomínia que leva à perda da dignidade, e com ela da humanidade! -Abel
falava como um tribuno, relembrando as épicas RGA’s da sua juventude, de novo
rebelde com uma causa e vendo a história repetir-se, não como farsa, como
o velho Marx profetizara, mas perigosamente como tragédia.
Nessa manhã,
os trilhos da liberdade apareciam aos velhos compagnons de route cheios de escolhos, emboscados pelo assalto aos
direitos, lançando a violência e esperando a mansidão do rebanho
como resposta. O Portugal de 2012 era outro, mais individualista, na penumbra
da net ou do Facebook, do cada um por si e para si, o 15 de
Setembro, apesar do lento acordar ao som arrepiante do hino de Lopes Graça, não chegava, ainda. A
Abel e aos amigos, mais que a afronta aos direitos, chocava a flacidez da
resistência e a anemia de viver, um viver fatalista,
vendo os jovens buscando futuro noutros lados, melancólicos conjugando os verbos
desistir e partir. E o drama é que sabiam que não seria um golpe militar ou a simples
convocação dos Abris adormecidos que fariam a diferença, desta vez. A ele e
aos amigos, contaminados pela estirpe da resistência, adormecida mas alojada
ainda, a disposição para a luta poderia ainda despertar os genes da esperança,
guardados no cofre do idealismo, mas e aos outros? E a anomia perante
as injustiças, a indiferença perante os direitos, a submissão perante os
grilhões?
Com a roupa desalinhada, deambularam pelas ruas, levas de turistas e funcionários públicos caminhavam já pela cidade que acordava, solitária e povoada de
caras consumidas, almas penadas do Portugal dos anos dez. Como esperançosamente
lhes haviam vendido o futuro como um mundo tecnológico, com cápsulas espaciais
e teletransporte, vida eterna e sem doenças, o admirável mundo novo de Huxley e
do Star Treck, e como ironicamente se
sobrevivia hoje sobre as ruínas da sociedade da abundância, no dealbar de novas
pobrezas, injustas, desiguais, em nova pré-história da fraternidade e do sonho.
No Rossio, e com cara de poucos amigos,
elementos do Corpo de Intervenção buscavam acampados da noite, insurrectos
do megafone. Olhando
de soslaio, os professores sem escola e agora órfãos de alunos,
seguiram cabisbaixos e cansados, interiormente contentes, apesar de tudo. Não
tinham salvo o mundo, as suas consciências salvariam ao menos. Já na Praça da
Figueira, e passando o 28 para a Graça, Abel fez sinal aos amigos, acelerando o
passo:
-Despachem-se, depressa! Com sorte ainda o apanhamos!
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