Segunda-feira, mais uma rotineira viagem do 441 das 7h
35m, de Fontanelas para Sintra, com os habituais cinco minutos de atraso. Logo
em Fontanelas, entrou José Alexandre, funcionário da câmara, para mais um dia a
ouvir reclamações, lendo o jornal e absorto da paisagem, sempre as mesmas
pessoas entrando nas mesmas paragens, com os seus passes e pré-comprados. Era o
primeiro passageiro, como sempre, o dia ainda a clarear. Nas Azenhas, três
jovens ruidosos, a caminho da escola, a derrota do Sporting na véspera
estimulava picardias, chingando em voz alta o treinador e os jogadores.
Na Praia das Maçãs, Susana, a prazo no Pingo Doce, entrou
já atrasada, arrastando uma barriga de oito meses. Breve seria mãe, uma menina,
babada, colocara a ecografia no Facebook.
Com o companheiro desempregado, apenas o seu ordenado pagava as contas, morando
com os pais dele na Tomadia, esse desordenado Cacém junto ao mar.
Quatro velhotas subiram em Colares, a tia Josefa, de
preto, chorosa da morte recente do neto de cinco anos, atropelado no Carrascal
vinha esbranquiçada e mecânica. O marido falecera há dois anos, agora o neto, carregava
o solitário calvário, amenizado pelas idas a Sintra no 441, a buscar ração para
os animais. Sozinha, dois gatos e um canário por companhia, a quinta das
tabuletas não tardaria, pensava, validando o bilhete e sentando-se, apática.
O autocarro seguia atrasado, os vidros embaciados, um
ventinho de nortada ameaçava chuva, esquecera
o chapéu, lembrou José Alexandre, um da loja chinesa colmataria por ora. O motorista,
calado, burocraticamente antipático, mecanicamente cumpria o serviço, paragens
com e sem passageiros, bilhetes e trocos, o irritante semáforo em Galamares,
seis viagens diárias nos dois sentidos, os mesmos passageiros às mesmas horas, naquele
dia, para variar, um japonês perguntando pelo Cabo da “Loca”. Subitamente,
acelerou, deixando os passageiros a travar com os pés, para não serem cuspidos
da inesperada montanha russa.
Na recta da Ponte Redonda, Susana até aí entretida a ler
uma revista cor-de-rosa, sentiu um pequeno espasmo, agitando-se na cadeira. A
tia Josefa, dando conta, meteu conversa:
-Está tudo bem,
minha senhora? -sorriu, olhando-lhe a barriga proeminente -não tarda muito tem aí uma menina…
-Obrigado, não é
nada, já passa. Como sabe que é uma menina? -interrogou, curiosa, endireitando-se no lugar.
-Na minha idade
essas coisas não enganam….só eu foram cinco, no tempo da fome. Mas todos se
criaram, graças a Deus!- um suspiro melancólico destapava uma vida de privações, e também de dever
cumprido.
Já perto da Ribeira, os jovens, barulhentos, no alvoroço
próprio dos quinze anos, quebravam a modorra, desafiando-se para jogos, debitando
música os auriculares de várias cores. Susana fez um novo esgar de dor e
contorceu-se na cadeira.-É agora! Ai
Jesus, que é agora!
Prestável, a tia Josefa segurou-lhe na mão e sorriu
premonitória:
-Chegou o
momento….rebentaram-lhe as águas não foi? Ó senhor motorista pare aí o
autocarro, que esta senhora está a ter a criança!
A notícia apanhou o carrancudo motorista de surpresa, que,
surpreso, encostou o autocarro, já Susana se reclinara com dores na fila do
meio. A tia Josefa e outra das velhotas fizeram um círculo em torno dela, com o
xaile duma a fazer de almofada, para os passageiros aquela tornava-se uma
viagem inusitada. José Alexandre abeirou-se, enquanto os miúdos, até ali
agitados, emudeceram de repente. O motorista correu a pegar a caixa de
primeiros socorros, tesoura e álcool teria, na retaguarda, impacientes, outros
motoristas com pressa, apitavam e blasfemavam contra o condutor, mal
estacionado e sem triângulo.
Aflita e transpirando, Susana arfava e fazia força,
reclinada de acordo com as instruções da tia Josefa, providencial parteira na
maternidade do 441.José Alexandre despejou a mochila e improvisou um berço para
o rebento, mal visse a luz do dia. Três minutos depois, um choro, e um rosto
ensanguentado fez a sua aparição, em clímax de felicidade, com as velhotas
aliviadas, recordando as suas horas pequeninas muitos anos atrás. Num gesto compulsivo,
todo o autocarro rebentou em palmas, com as velhas erguendo como troféu a mais
recente passageira para Sintra, e sem bilhete, ironizou embevecido o motorista.
Pelos telemóveis, os miúdos ligavam aos amigos, não iriam acreditar. Recomposta,
e chorando de alegria, Susana agarrou as trezentas gramas de vida que não
quiseram esperar por um hospital, e instintivamente, beijou a testa da tia
Josefa, a quem uma lágrima correu pelo rosto. Apesar de velha, era útil ainda,
só por isso a ração das galinhas seria reforçada, essa tarde.
Três meses depois, realizou-se o baptizado da pequena
Sofia, e todos os passageiros e motorista daquele dia chuvoso foram convidados,
testemunhas e cúmplices do milagre do 441.A tia Josefa perdera um neto, mas
ganhou uma neta, a quem todos os dias, na volta do mercado, leva chupetas e
toma conta, enquanto a mãe vai para o trabalho. Na rua, e no 441, gente absorta renova as diárias rotinas, calando revoltas e gritando
silêncios, acima e abaixo. Misteriosa, a vida, com e sem bilhete, renova-se,
atrás da vida, muitas vidas há, e nela, atarantados e renovados passageiros.
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