Um Glenffidich, com gelo, em fundo, a dança dos
espíritos abençoados, do Orfeu e Eurídice. É cada vez mais Outono, saltado que
foi o discreto Verão. Para quê sol nos corpos, quando gelam as almas? É
segunda, ainda bem. Odeio os domingos, Raúl. Dantes a família almoçava, depois
da missa, envergando fatos domingueiros. Já não há famílias, nem missa, nem
fatos. Que saudades do passeio de barco ao Ginjal, enfiado num fatinho de marujo,
a comer enguias e a visitar a avó, que esperava com bolo de noz e scones
com geleia. Nunca mais comi bolo como esse! Têm passado, os sabores, Raúl, e
muitos deles sem futuro. E o rádio, com o relato da bola, gritando cada canto
como antecedendo um enfarte, e o cheiro a castanhas, e a Laranjina C.
É, sabes, o passado está todo por aí, em gavetas com
naftalina. Em álbuns, arquivos mortos de vidas passadas, e neste cheiro de
Sintra, orvalhado e húmido. Cansei do Gluck, Raúl, põe o Strauss. A valsa do
esquiador? Ok, seja, só por isso, outro Glenfiddich!
Engraçado. Nunca estive nesse passado de valsas e palácios, mas como elas são
passado do meu passado! Cliché. Bonito. É bonito falar do passado, por
nostalgia, talvez arrependimento. Tem uma vantagem: é porque se tem passado. E
apaga a televisão, Raúl, chega de eletrodomésticos, por hoje!
Não mexe uma palha lá fora, dentro, cá dentro corre um
vento intranquilo. É Monserrate, é nortada. Que mundo incerto recordaremos
daqui a vinte anos, como um bom passado? Os copos que se beberam? A infância
dos filhos, ingénuos e puros, azul ou rosa como as roupas que lhes enfiámos à
nascença? Queria ouvir o Morrison, Raúl, mas estou intemporal, apetece-me
música de salão, hoje, sim, traz-me o pingalim do avô, e o tabaco de enrolar.
Põe aí a Annen do Strauss, Raúl, sim, a polka 117, grande música para um slideshow
de vida! Os infelizes preferem Philip Glass, Bartok, eu quero evadir-me, quero Glenffidich,
aumenta o som e diz à vizinha que enlouqueci, Raúl, e que a música é a conselho
médico!
Engraçado, sinto-me um pássaro, capturado numa melodia
de Dvorák. Ainda bem que o domingo passou. Naquele tempo, não importavam os domingos,
todos os dias eram Dias, sem a maçada das semanas, décadas ou gerações.
É segunda, hoje. Monday. Dia da Lua. E a Serra da Lua
aí está, os meus óculos, depressa, que me cega, de bela! Olha, esconde o
Glenffidich, e diz ao mundo- ou pelo menos ao jardineiro- que Arnaldo da
Nóbrega desistiu de viver. Só ouvia vinis, e num mundo onde não vendem
pontas de diamante, riscou-se de membro. Que partiu, ao som de Annen, levando
os livros, os selos, o perfume de Sofia, e o bolo de noz da avó. Auf
Wiedersehen! É forte, a despedida em alemão, não achas, segura e sem
lamechas?. Raúl! Maldito boneco de porcelana, não fosse a tia Zita e já estavas
feito em cacos, degenerado!
Arnaldo Nóbrega, vendedor de insónias, em Sintra,
Frio Património da Humidade
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