Há pouco mais de vinte anos, no auge
da política de obras públicas que marcava Portugal, com a construção de
autoestradas, a Expo 98 ou o boom da construção civil, Portugal assistiu a um
fenómeno pouco habitual, que foi o de, num país mais habituado a ver partir,
assistir à chegada em massa de trabalhadores migrantes do leste europeu.
Com o colapso da União Soviética e a
desorganização e desmantelamento social que marcou a era Ieltsin na Rússia e o
desmembramento do COMECON e do Pacto de Varsóvia, muitos dos países resultantes
da antiga URSS atravessaram anos de chumbo, oscilando entre um Ocidente antigo
inimigo e a busca dum papel histórico e desígnio de futuro.
Nesse limbo, muitos partiram para a
Europa antes dita capitalista, e Portugal não escapou. E dessas paragens
começaram a chegar milhares de pessoas, muitas delas qualificadas, mas que por falta de reconhecimento dos seus cursos
trabalharam na construção civil, nas limpezas, na apanha da fruta, gente
sofredora mas lutadora, e que nunca virou as costas ao trabalho, ainda quando este era explorado e lento o reconhecimento oficial dos seus direitos, apesar de pagarem
impostos e fazerem descontos.
Com os anos, acabaram por se integrar, e são hoje uma comunidade afável, já na segunda geração, com filhos que só pelo nome ou cor do cabelo se distinguem dos portugueses, quadros que frequentam as nossas universidades, que abriram lojas e restaurantes e até representam as nossas cores em modalidades olímpicas. À distância de 20 anos, recordo a Oksana, médica que ajudou na cozinha do restaurante da minha irmã por essa altura, o Bogdan o Volodymir, ou o Boris, que hoje mora perto de mim e tem filhos já com mais de 18 anos e nascidos em Portugal, entre outros.. Recordo com carinho um senhor, cujo nome esqueci, que trabalhava numa obra como pedreiro e que tinha uma voz de cantor lírico e que certa noite entoou canções do folclore ucraniano naquele timbre que só poucos conseguem transmitir numa noite de comida e cultura ucraniana no restaurante da minha irmã.
Vindos dum país que então lhes negava o pão, oscilando
entre oligarcas pró-russos e políticos sem projeto de futuro, revi-me nessas
pessoas, como se a imagem do Portugal de emigrantes a salto e fugidos da fome
ou da ditadura nos anos sessenta se repetisse, mas agora em sentido contrário.
Hoje, pouco damos por eles, sinal de
se terem integrado e sem que a comunidade ucraniana tivesse criado conflitos de
espécie alguma. Num caso isolado, foi inclusive um cidadão ucraniano quem foi
vítima da nossa polícia, num episódio que foi individual e produto de
circunstâncias negativas que então se juntaram, e creio não ter sido movido por ódio racial, mas por excesso no (ab)uso da autoridade.
No momento em que um ex-agente do KGB saudosista da
Rússia imperial quer reescrever a História visando mudar a Geografia, todos olhamos
para essa comunidade que antes já foi o Outro, mas que é hoje parte do Nós, e, mais
do que a solidariedade que já demonstrámos com vítimas de terramotos ou de
inundações, aqui, para lá da simpatia natural com todas as vítimas de opressão,
há um sentimento reforçado e de proximidade muito maior. As Oksanas e os Bogdans que
conhecemos nos finais dos anos noventa são hoje parte de nós e das nossas memórias, vão aos nossos
concertos, compram nos nossos supermercados, fazem desporto nos nossos clubes, e têm filhos que sem esquecer a pátria ucraniana sentem hoje Portugal, um pouco
como a frase do Pessoa: primeira estranhou-se, depois entranhou-se.
A solidariedade com os ucranianos é,
pois, natural, e em todos os cantos do nosso país, pobres e menos pobres sentem
a necessidade de fazer algo. Há uma mobilização coletiva nos que recolhem bens, disponibilizam carrinhas e autocarros,
acolhem famílias e se reúnem em vigílias e protestos por todo o lado. A imagem
da Katya e da Anastasia abraçadas na manifestação de Sintra de terça feira
passada deixou bem claro que a ninguém este drama pode ficar indiferente. Hoje somos todos ucranianos.
Como escreveu Edgar Morin, a
Humanidade é uma Comunidade de Destino. Slava Ukraine!
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