E pronto, 2016 está de partida, e ou me engano
muito ou ainda vamos ter saudades dele, atentas as sombras de além atlântico e
o King Kong da melena loura. Afinal fomos campeões em futebol, Guterres foi
para a ONU e vimos mais uns cêntimos no bolso, apesar das fatwas do ayatolah laranja.
Para 2017, alguns desejos.
Primeiro, o da paz. Paz na Síria, no Iraque, e
em todas as zonas de conflito de onde nos chegam as hordas de descamisados
em botes no Mediterrâneo. A realpolitik
não deixará muita margem de manobra no tabuleiro dos interesses, mas há que
porfiar por uma ordem mundial de Humanidade, apesar de já termos vivido
Hiroshima, Srebrenica e Saigão.
Depois, a solidariedade com os mais
desfavorecidos e a persistência na luta por uma sociedade de iguais e mais igual (enfim, a
velha utopia…). E para tanto há que tratar de forma distinta quem já é
discriminado pela crise financeira e pelas agruras da globalização, antes vista
como boa e agora causa de todos os males.
E por fim, algumas vontades mais egoístas: a de
ver o Sporting campeão,(São os 100 anos das aparições de Fátima, logo é ano de
milagres) perder mais 10 quilos (todos os anos faço esta promessa em Janeiro,
logo é tradição) acabar mais um livro e voltar a fazer uma viagem grande, com
amigos se possível
2017 pode ser um ano de desafios, mas também de
inseguranças e perigos novos. Não queremos muros, mas pontes, não queremos
refugiados mas parceiros, não queremos fechar mas abrir, contra o ciclo da
autofagia hedonista e a ditadura das redes sociais, cloaca das mais diversas
frustrações.
2016 deixou-nos perante a tormentosa constatação
de que a evolução do mundo não é gradualmente para melhor e que de vez em
quando também pode regredir, obrigando a um novo passar do Rubicão. Trump, o
Brexit, os refugiados o confirmam. Mas há que ter esperança.
Despeço-me com uma frase lapidar de Nelson
Mandela:“A
paz é a maior arma para o desenvolvimento que qualquer povo pode ter.”
Tudo se prepara no salloon de
Washington para a chegada dos Dalton, Jesse James e Billy the Kid dia 20 de
Janeiro. Apeado o escravo liberto que durante oito anos tomou conta da fazenda,
é a vez dos cowboys voltarem à cidade para encharcar os adversários em alcatrão
e penas, talvez com vodka russa aos brindes...
Agora que chegou onde queria, Donald
Trump, o novo xerife, já pode voltar a ser o que nunca deixou de ser: um banal
troglodita que durante uns meses virou um troglodita político, não para
regenerar o sistema americano ou ser a voz dos deserdados de Washington, mas
para o narcísico cumprimento de um capricho: o de, depois de milionário,
apresentador de televisão, e socialite depravado ser presidente dos Estados
Unidos. Podia tê-lo feito entrando numa série da Netflix ou num filme de Clint
Eastwood, mas não, tal como o coronel do Apocalipse Now, que precisava do
cheiro de napalm pela manhã, Trump precisava de agarrar a Casa Branca como
agarrou as pussy das meninas do The Apprentrice. O poder é afrodisíaco, dizem,
e Trump está a saborear o seu, Nero dos tempos modernos pondo a culpa nos
imigrantes como antes este nos cristãos, pegando fogo a Roma e culpando
islâmicos, latinos, mulheres, com os seus cowboys pronto a devolver os Speedy
Gonzalez aos desertos do México ou os refugiados às ruinas de Alepo donde nunca
deviam ter saído.
Tudo teria graça não fosse uma
desgraça.Trump, o construtor civil, vai agora dedicar-se a construir
muros, cimentar a segregação, humilhar, deportar, ameaçar, qual novo e
requentado doutor Strangelove com o botão nuclear ao lado do champanhe francês
e de alguma playmate contemplando a "sua" América da janela da Sala
Oval ou da penthouse na Trump Tower. É claro que pouco ou nada do que disse ou
prometeu sairá do papel, mero soundbite para abrir telejornais e ganhar votos
nos rodeos do Kansas ou Arizona. Mas o mundo vai ficar mais perigoso,
desconfiado, fechado nos seus medos e numa perigosa esquizofrenia
isolacionista. A América que produziu Obama, também pode produzir um Trump.(ou talvez por isso mesmo).
Resta ver como reagirão chineses, europeus e mexicanos a esta fronda da direita
que em vez de proletários uniu milionários.Os dados estão lançados, e a hora é de Trump, o novo dono do salloon.
Em 2017,
passarão 100 anos sobre as aparições de Fátima e da Revolução Russa, dois
fenómenos igualmente religiosos pelos seguidores, altares e liturgias que daí
em diante suscitaram. Em Fátima, a superstição, em Moscovo, a ilusão, que
desde então passaram a levar milhões à Cova da Iria e à Praça Vermelha.
Escreveu
um dia Freud que o homem comum entende a religião como um sistema de
doutrinas e promessas que, por um lado lhe explica os enigmas do mundo com
uma perfeição invejável, e que por outro lhe garante que uma Providência atenta
cuidará da sua existência e o compensará, numa futura existência, por qualquer
falha nesta vida. Trata-se pois do reconhecimento de que o homem por si só
nunca poderá triunfar como indivíduo sem a totémica sombra do Partido ou de
Deus, acima de si e da sua circunstância, errando como eterno animal aflito procurando o
Fogo no topo da Caverna. Tanto a crença nos pastorinhos e na senhora de branco
que lhes apareceu (nunca percebi onde aprendeu a senhora português, ou se os
pastorinhos falavam aramaico…) como nos descamisados de Outubro marchando ao som da
Internacional até à vitória final, são fenómenos visualmente cénicos e catalisadores
de emoções, catarse de frustrações e espécie de fé (ou fezada…) em algo que no
fundo se sabe que nunca virá, mas fica bem pensar que sim. Uma das características do
ser humano é a sensação de insegurança e a necessidade de protecção e de
amparo. A religião surge como o mecanismo de defesa perante as ameaças da
natureza e a avareza da sociedade, e a senhora de branco,como
protectora suprema que alivia as angústias e os medos perante a realidade, tal
como o Partido e o seu líder vanguardista foram o protector sem dúvidas a caminho da
sociedade de iguais, nova terra do leite e do mel socialista.
A constante
necessidade de ter um pai ou uma mãe nasce dos desejos mais intensos do ser
humano, e das suas fragilidades. Aflitos de todo o mundo, uni-vos pois para celebrar as certezas que tantas dúvidas suscitam. E se puderem, vão a Fátima de joelhos, ou cantem hinos revolucionários de punho cerrado.
Não resolve nada, mas tal como a aspirina, atenua a dor de cabeça sem curar a
doença. Mas isso sou eu, agnóstico confesso e ex-revolucionário que também por lá andou, de vela na mão em Fátima ou nas Festas do Avante. Ninguém é perfeito. Como escreveu Bernard Henry-Levi, "Cristo morreu, Marx também, e eu não me sinto lá nada bem".
Mário Soares
ficará indelevelmente na História de Portugal como uma das grandes
personalidades do século XX, a par de Afonso Costa, Salazar ou Álvaro Cunhal,
todas na sua circunstância e enquadramento histórico.
De compagnon de route do PC a fundador do
MUD Juvenil, de apoiante de Delgado à deportação em S. Tomé, foi com o espanto
dos meus catorze anos que vi anunciar a chegada a Santa Apolónia naquele final
de Abril de 1974 daquele político exilado, de quem só uma vez ouvira falar em
casa de meu avô. E com ele e com outros estive nesse épico 1º de Maio de 1974,
nesses dias frenéticos em que tudo parecia ser possível. Crismado como o Kerensky
português por Kissinger, foi graças a ele que após a luta contra a ditadura se
travou a luta pelo pluralismo e pelas liberdades, como se viu com o caso
República, o 11 de Março, o Verão Quente de 1975 ou o cerco à Constituinte.
Homem de esquerda, mas sobretudo humanista e moderado, nele se reviu a maioria
do povo português em eleições para a Constituinte e para a primeira Assembleia
da República. E apesar de alguns estigmas que lhe quiseram colar- o pisar da
bandeira em Londres, a descolonização, etc- foi já um político com os pés
na terra que nos levou à democracia institucionalizada, ao Serviço Nacional de
Saúde ou à entrada na então CEE. Com ou sem socialismo na gaveta, com ele
Portugal enfileirou com as democracias europeias, nunca se negando a um
combate, e ao mesmo tempo sendo um homem de letras mundano, no que de mundo tem
a mundanidade. Lá fora esteve com as democracias, visitou Arafat em Beirute,
pugnou pela sua família política e trouxe Portugal ao século XX, apesar do
socialismo na gaveta ou dos salários em atraso e das duas vindas do FMI com que
o país se teve de defrontar.
Envelheceu
como senador, e aos adversários políticos nunca olhou como
inimigos, fez de Portugal uma sociedade aberta, democrática e cosmopolita.
Quase a despedir-se, recordo a sépia e com emoção essa chegada a Santa Apolónia nesse Abril madrugador, o 1º de
Maio de 1974, a adesão à Europa ou até o passeio de tartaruga nas
Seychelles. ou de elefante na Índia. Na História está já, e mais que num parágrafo de rodapé, com outros portugueses de destaque merece o nosso tributo e orgulho por a par de outros ao longo dos anos, ter sabido haver um tempo para construir um modo. O nosso Tempo.
Em
28 de Maio de 1926, tropas e metralhadoras vindas de Mafra dirigiram-se para a
Granja do Marquês, para a Escola de aviação, em apoio ao movimento, bem como
para Sintra, assustando as populações, tendo alguns escapado para a Praia das
Maçãs. As tropas da Escola de Aplicação de Infantaria, com os oficiais do
Depósito de Remonta, marcharam sobre Sintra a reunir com a aviação, tendo o
comandante das forças revoltosas de Sintra, coronel Oliveira Gomes feito uma
proclamação em nome do movimento revolucionário que o general Gomes da Costa
iniciara em Braga. Na Granja do Marquês juntaram-se 6 aviões Vicher’s e 1500
homens da Escola de aviação, do grupo de esquadrilhas da Amadora, Grupo de
Metralhadoras Pesadas e da infantaria de Mafra. Quatrocentos marinheiros que os
iam enfrentar em Mafra bateram em retirada. Entretanto, no dia 30, chegam a
Sintra 250 praças vindas da Granja para se dirigirem ao posto de comando de
Gomes da Costa na Amadora, pelo caminho juntaram-se mais 300 no Algueirão,
comandados pelo tenente Pires da Silva. Triunfante o golpe, logo a Câmara de Sintra foi dissolvida, e substituída por uma Comissão Administrativa onde pontificava o capitão Craveiro Lopes, mais tarde Presidente da República, a censura prévia é introduzida e Sintra alinhou num golpe que, se
começou por juntar facções republicanas desavindas, terminou alguns anos depois
na consolidação do Estado Novo por um professor de Coimbra.
A Sporting TV esteve recentemente a conhecer o Núcleo do Sporting Clube de Portugal de Sintra, tendo gravado um programa da rubrica Núcleo Duro, onde intervenho falando de Sintra e da sua História, como sintrense apaixonado e presidente da Assembleia Geral do Núcleo, bem como da vida do mesmo. Veja aqui, em dia de derby, e antes do jogo:
Aterrei
em Cuba no verão de 1997, após uma viagem nas Linhas Aéreas de Moçambique, com
a curiosidade de descobrir o socialismo tropical que um grupo de barbudos
impusera em 1959 e de que a minha memória ia recheada de imagens da juventude,
da iconografia do Che às canções revolucionárias e de incentivo à luta. A
primeira imagem foi a de um mergulho no passado: apesar do clima quente e
húmido, o aeroporto era um velho barracão, com televisões a preto e branco,
alguns carros dos anos cinquenta que faziam lembrar alguns filmes americanos,
turistas alguns já. Estávamos no “período especial”, quando Cuba privada do
apoio russo após a perestroika ensaiava abertura no turismo e onde
paradoxalmente todas as trocas eram feitas em dólares do inimigo yankee.
Havana
transpirava de calor no fim de tarde, com os ritmos do danzon invadindo as vielas, velhas de
charuto arengavam e abordavam os turistas
nas calles do Malecón, numa terra onde o Che aparecia como o Cristo Redentor no altar da Revolução e a voz
de Omara Portuondo, Ibrahim Ferrer e Compay Segundo soava em alguns rádios roufenhos como um passado nostálgico
mas vivo.
Não foi
sem emoção que peregrinei nos santos lugares onde a Revolução fora prometida
como terra do leite e do mel, ainda para mais com águas a vinte nove graus e
orgíacos mojitos castigando o corpo na noite do Caribe. Como suspeitava, a
revolução não vingara para lá do discurso inflamado, um povo alegre e culto mas
pobre pululava nas ruas, serpenteando em torno dos turistas e dos dólares. Prateleiras
vazias nas lojas e frágeis balsas para Miami eram os legados do socialismo, à
mercê de tubarões na fuga para a liberdade. Comprei Cohibas e Havana Club,
T-Shirts do Che, músicas do Che, livros do Che, o Che D. Sebastião dos trópicos,
espectro dum socialismo que há-de vir, o
patriarca Fidel vigiava ainda sentinela,
cadáver dum socialismo latino americano. Dengosas mulheres da vida desafiavam turistas
na praça da catedral, corpos escaldantes por cinco euros, sida não incluída, as
trovoadas tropicais açoitavam o mar e despertavam agitados cardumes de peixes
na calmaria da península de Ancón.
Por
essa altura, alguns patos bravos de Sintra, pedreiros de gravata enriquecidos
no boom da construção civil, enchiam os resorts e ostentavam charutos que lhes
conferiam o ar de gringos europeus e novos ricos, chingando Fidel nos lobbys dos hotéis, ante o sorriso complacente mas silencioso dos empregados, muitos
engenheiros e arquitectos, mas a quem o ordenado real de 37 dólares mensais e uma
magra caderneta de senhas para o racionamento pouco ajudavam, encontrando alternativa
nos hóteis de Varadero e Cayo Largo
A noite
do Tropicana pareceu-me demasiado turística, melhor a simpatia dos pequenos
bares na zona velha, onde pontificavam miúdos pedindo lembranças, atraídos
pelo dólar salvífico. Um placard que retive proclamava, seguro.”200
milliones de niños en el mundo duermen hoy en las calles.Ningún es cubano”.
Recordo um povo alegre e musical, o som inebriante de El Bodeguero, de Richard Egues, a minha música cubana favorita, as trovoadas
tropicais no mar do Caribe, as noivas de Cienfuegos, o calor e a canchancha de Trinidad, cidade de
escravos e da cana do açúcar, os supermercados vazios as águas cristalinas e tépidas.
Uma
nota de humor: num bar de colmo na Marina Hemingway, certa noite, com uma tempestade
tropical a aproximar-se, num palco improvisado três cegos com óculos escuros
cantavam os hinos da revolução, anunciando os amanhãs que cantam a três
dólares, solo monedas, compañeros, non
tarjetas. O som familiar das canções que
galvanizado entoara em anos já passados, tornaram-nos nostálgicos. Três
mojitos e seguímos embalados com “tu, querida presencia,
Comandante Che Guevara”.
No fim,
chapéu circulando, e lá caíram três dólares para a revolução, cegos, mas dignos, e
com talento, pensámos, entregando os solidários dólares. No dia seguinte,
após um jantar num paladar, espécie de restaurante em casa de famílias a quem
ao de leve era permitido o que hoje chamaríamos de empreendedorismo, e onde
comemos lagosta grelhada na chapa e apanhada na hora, voltámos a um bar do
Malécon. Sem óculos escuros e com umas camisas estampadas, lá estavam os três cegos da
marina, vendo perfeitamente e cantando, “hasta la victoria, siempre”.Nada
como Cuba e a Revolução para até os cegos voltarem a ver, milagre do
socialismo real a três dólares por cabeça.