domingo, 24 de abril de 2016

O meu 25 de Abril de 1974

Naquela quinta-feira não houve aulas e o ponto de Física ficou adiado por causa duns militares que ocuparam o Terreiro do Paço, o meu avô telefonou logo de manhã a aconselhar que não saíssemos de casa, chuviscava e o dia estava cinzento. Na televisão, passaram um episódio repetido do Daktari, contente por não haver aulas, aproveitei e fui ao barbeiro, onde corriam boatos desencontrados sobre o sucedido, um dia sem aulas era sempre uma festa.

No dia seguinte o D.Pedro V, liceu de Lisboa onde frequentava o 5º ano (hoje 9º) estava agitado, o porteiro fugira, era informador da PIDE-DGS. No sábado, 27, depois duma avalanche de acontecimentos e debaixo de chuva, subi com os meus pais e irmã ao Carmo, onde os soldados com cravos nas armas e pendurados em blindados tiravam fotos com populares. Tudo acontecera em poucas horas. Lisboa, cinzenta e molhada, exultava de alegria, na estátua do Rossio, uns guedelhudos invetivavam alguns transeuntes apelando à sua prisão, informadores da PIDE, denunciavam, levando à sua detenção por populares acirrados. Com um megafone, Saldanha Sanches, do MRPP, ( mais tarde soube quem era) clamava contra os fascistas.

Em poucos dias, tudo mudou. O “careca megalítico”, professor de História, até ali sorumbático, mostrava-se agora simpático e adepto da nova situação, opositor silenciado durante anos, rejubilava, mais receoso, o professor de Moral, temia a anarquia. Embriagados pelas notícias da liberdade que de todo o lado choviam, animados por canções de protesto nunca antes escutadas, descobriam-se mundos escondidos, os sons de Zeca, Fanhais, Luís Cília e Adriano, na sala de alunos, manifestos policopiados  e jornais de parede em profusão apelavam a RGA’s, a nova vida da escola discutida no dia seguinte.

O primeiro plenário do MAEESL- Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário de Lisboa decorreu no ginásio do Liceu D.Pedro V, tendo o reitor, “lacaio” do regime, sido previamente saneado. Apesar de já saber algo de política- o meu avô era opositor de Salazar e antigo apoiante de Norton de Matos e Humberto Delgado, e no 1º de Maio de 1973 foi mesmo agredido no Rossio, por participar numa concentração não autorizada- pela primeira vez ouvi falar de Álvaro Cunhal e Mário Soares, apesar de Spínola ser um nome de quando em quando sussurrado em minha casa ao jantar.

No dia do trabalhador, com meus pais subi a Almirante Reis e estive no grande 1º de Maio de 1974. Portugal estava todo ali em festa, marinheiros e anónimos abraçados, o mundo olhando para um esquecido rincão atlântico que desassombrado e agigantando-se fazia a primeira revolução utópica dos tempos modernos.

Nas semanas seguintes, o país transfigurou-se, a escola entrou em ebulição, os partidos dividiram as opiniões e os plenários foram ficando organizados, a democracia  gatinhou, vendo os jovens tornando-se homens. Nada poderia deter a força indómita da geração da liberdade.
Foto tirada por mim no 1º de Maio de 1974. O senhor de óculos, em baixo, é o meu pai.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Como vamos de Património Mundial?



A Paisagem Cultural de Sintra, aprovada a 6 de Dezembro de 1995, em Berlim, celebrou recentemente  o seu vigésimo aniversário. Na promoção e defesa deste património, dos monumentos e sítios classificados, hoje já com resultados visíveis, há que continuar um trabalho efectivo, juntando cidadãos, associações cívicas, técnicos e moradores. Só se pode acarinhar uma ideia como a de Paisagem Cultural se esta assentar em consensos e for perspectivada como instrumento de desenvolvimento para quem habita no seu seio, e não como o eucalipto que tudo seca e põe a comunidade contra si. Não há paisagem cultural sem pessoas, e não há gestão bem sucedida sem consensos, e a melhor forma de gerar cultura entre os cidadãos passa por estes conhecerem o seu próprio património, pois só se pode valorizar o que se conhece.

Exige-se cada vez mais cumplicidade e compromisso do mundo científico e da sociedade civil na melhoria da nossa Paisagem Cultural, na garantia da sua sustentabilidade, sendo a participação cívica das comunidades locais elemento fundamental para um desenvolvimento das áreas classificadas, envolvendo em permanência os stakeholders e os parceiros da sociedade civil na construção de uma Paisagem Cultural pró-activa.

Vinte anos depois, com um quadro institucional e financeiro definido, a recuperação de muito património em risco, e a melhoria da articulação entre as entidades que estão no terreno, há que trabalhar para melhorar os procedimentos e acelerar as decisões. Para tanto, foi pela CMS aprovada a criação da  Área de Reabilitação Urbana, com cerca de 180 hectares.  Sintra passou a integrar igualmente, desde há alguns anos, a Aliança das Paisagens Culturais, uma rede internacional que procura preservar os espaços declarados Património da Humanidade pela UNESCO, e que são hoje mais de 60.

Em 2008, a Aliança produziu a Declaração de Aranjuez, na qual os sítios classificados expuseram as suas inquietações e analisaram a necessidade de compatibilizar a preservação dos lugares com um adequado desenvolvimento económico e social das terras e gentes em seu torno.
Ser Património da Humanidade implica a cumplicidade e o compromisso de todos, autarcas, comunidade científica, sociedade civil e stakeholders, na melhoria da Paisagem Cultural e na garantia da sua sustentabilidade, e apela à participação cívica das comunidades locais, enquanto elemento fundamental para o desenvolvimento sustentável das áreas classificadas. Traduz este anseio o reconhecimento e a verificação da necessidade duma cultura democrática de participação e transparência na gestão da Paisagem Cultural.Daí terem a Câmara de Sintra e a sociedade Parques de Sintra-Monte da Lua (PSML) assinado um protocolo para a criação do Gabinete do Património Mundial, para acompanhamento e monitorização da área classificada como Património da Humanidade, visando promover a aproximação entre os interessados na zona classificada através do debate de ideias sobre a gestão e a reabilitação do património.

O acompanhamento das intervenções de entidades públicas e privadas na área de protecção da Paisagem Cultural e a promoção de estudos científicos e técnicos serão outras atribuições do gabinete, indo esta estrutura acompanhar os impactos e os resultados do plano de acção do Plano de Gestão, e proceder à avaliação das ameaças permanentes e riscos da zona classificada. O gabinete ficará também incumbido de avaliar as alterações das condições e o estado de conservação dos bens, através de relatórios periódicos, com base em informações anuais, e de elaborar um manual de monitorização, revestindo as suas recomendações à câmara e à PSML carácter consultivo e informativo, não se substituindo às atribuições e competências legais dos serviços, organismos e entidades envolvidas.

A criação de um gabinete da Paisagem Cultural era uma já antiga recomendação da UNESCO, desde 2005, na sequência de diversas missões técnicas para avaliar o estado de conservação da zona classificada de Sintra, sendo que a autarquia e a PSML assumiram em 2010 a revisão do plano de gestão da Paisagem Cultural, a partir de sugestões de peritos da IUCN (União Internacional de Conservação da Natureza) e do Icomos (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios).

Desde 2006 que a UNESCO considera não existirem motivos para inscrever Sintra na lista de património mundial em perigo, dada a recuperação desde então ocorrida na zona "inscrita" (parte da serra e da vila). Há, contudo, que continuar a zelar para que se evite o risco dum crescimento urbanístico não planeado nas zonas "tampão" (da serra até ao mar) e de "transição" (que inclui a área do Parque Natural Sintra-Cascais).

O caminho passa por aos poucos ir modelando uma entidade que supervisione toda a designada área da Paisagem Cultural de Sintra classificada como Património da Humanidade, a ela estendendo as competências de fiscalização e licenciamento agora distribuídas pela autarquia de Sintra e pelo Parque Natural de Sintra-Cascais, entidades que se atravessam em muitas e desnecessárias situações, o que poderia passar pelo alargamento do objeto estatutário dessa empresa e pela consignação da Área de Paisagem Cultural como área recortada no PDM de Sintra.

À Parques de Sintra-Monte da Lua compete não só a boa gestão e optimização dos recursos que lhe ficam adstritos, como a prossecução de uma política de investimentos e obtenção de receitas que conjugue as necessidades operacionais com o direito à fruição e gozo dos mesmos espaços e equipamentos. Mas de forma moderada, e sem derivas economicistas, pois se o óptimo é inimigo do bom, essencial se torna não esquecer que sem visitantes não há receitas, e sem receitas não há recuperação do património.

A UNESCO vem afirmando que a pressão turística tem sido controlada com a diversificação de locais e centros de interesse, e novos circuitos, melhor distribuição dos visitantes, tendo sugerido igualmente a recuperação de outros edifícios dentro do parque da Pena, bem como a criação de uma escola para jardineiros ou um museu explicativo dos sistemas de irrigação da serra de Sintra. Tem também recomendado que as comunidades locais se envolvam mais na gestão da área classificada, e que os proprietários e as associações locais -os designados stakeholders - sejam consultados com regularidade.

A gestão dos parques e jardins requer o apoio de escolas de conservação especializadas similares às que já existem para o património edificado, com trabalho de investigação. Houve porém uma mudança de paradigma na gestão da "jóia da coroa", com a filosofia de "abrir para obras" acompanhando as recuperações em curso, o que é internacionalmente aconselhado, já se tendo verificado no caso do Chalé da Condessa ou no castelo dos Mouros, tendo o diálogo com a sociedade civil e os stakeholders dado passos importantes. Mas tudo é um work in progress, e permanecem por resolver questões importantes, como o do acesso de visitantes, coartado ainda por constrangimentos no trânsito e estacionamento, sobretudo os que se deslocam em carro ou autocarro, ou o elevado custo dos bilhetes para visitar os monumentos geridos pela Parques de Sintra, como o arqueólogo Luís Raposo recentemente salientou, em artigo no Público.

terça-feira, 12 de abril de 2016

Utopia Teatro: o fim anunciado





Foram vinte anos a marcar o panorama de Sintra, aqueles que depois duma noite mágica no antigo bar Tópico, hoje Legendary, o Utopia Teatro nos proporcionou, trazendo a generosidade e utopia de um grupo de sonhadores dos palcos, aí mesclando a experiência e esperança nos palcos da vida.

Nuno Vicente, Rui Brás, Ana Bernardino, e outros mais, sentinelas da Luz, guturais vozes da bruma sintrense, depois do quase solitário Alvim ou da interrompida viagem de Maria João Fontaínhas, vieram a par de uma nova geração dar corpo a muitas vozes silenciadas de autores de palco, numa geografia de cultura mas de cultura muito parca à época do seu aparecimento. E há que juntar João Mais, Susana Gaspar, Paulo Campos dos Reis, Maria Barracosa, Ricardo Soares, Filipe Araújo, todos sobre a batuta do druida Vicente, silencioso e penumbroso personagem manobrando a cena, e quase sempre fora de cena.

Vinte anos depois de A Noite da Iguana, naquele Março de 1996, o Utopia decidiu ser tempo de afrontar a tundra e deixar-se finar, para sempre nascendo na lenda do teatro que se fez em Sintra. Dele ouviremos falar, como de José Valentim Lourenço, Gil Matias, João de Mello Alvim, Rui Mário, Pedro Alves ou Paulo Cintrão, cavaleiros dum Apocalipse redentor que no caldeirão cynthiano aqueceram a Palavra e o Verbo. E vão fazê-lo com classe, juntos e junto a nós lançando um livro-testamento, que assinalará um tempo de sonhos, frustrações, anseios e conquistas.

Itinerantes, intermitentes, irreverentes, jamais tiveram uma casa, mas em casa sempre estiveram quando estiveram com os seus, o seu público, o das palmas familiares, dos desejos de muita merda, das ceias no fim das estreias, da satisfação do dever cumprido, razoavelmente sonhando o impossível. Foi nos Aliados, na Casa de Teatro, no Valenças, no 2M ou nos Recreios do Algueirão. E nas ruas e fontes de Sintra, peripatéticos roteiros pela nossa História recheada de “estórias”, espalhando um “miiiaaauuu de poemas “ ou “Um esgar”, anunciando um qualquer “Policial” em modo “Renaissance”, ou vendo Laurel e Hardy subindo ao céu, após uma Despedida de Solteiro. E foram também Henry Edward Catarina sofrendo por Lampedusa na Falésia, desesperando por um Singular Amor perto dum Pequeno Anjo de Rosto Mutilado.

O pano vai cair, a festa, essa, vai começar numa feérica dança dos sonhos em torno do anacoreta Nuno, bardo do Futuro e tabelião da Palavra Dita. Hoje, ontem, e sempre, neste finistérrico promontório, a Utopia renasce e continua!