segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

D. Fernando II- o rei de Sintra partiu há 130 anos


Passam a 15 de Dezembro 130 anos do falecimento de D. Fernando II, o rei de Sintra.Aqui reedito um texto por mim inserto no meu livro "Histórias Com Sintra Dentro", onde de forma romanceada reconstituo o último dia de vida do monarca.



Envolvo num grosso jaquetão e com o chapéu enterrado até às orelhas, desafiando o invernoso Dezembro, D. Fernando saiu das Necessidades com ar cansado e o rosto deformado pela doença. Elise não quis ir, mas nem o frio e as dores o demoveram da récita em S. Carlos, para ver “Os Huguenotes”, de Meyerbeer. S. Carlos era a sua segunda casa.Em S. Carlos estivera com Maria, em S. Carlos se apaixonara por Elise, logo enviando um bilhete ao Fraschini, para que lha apresentassem.

-Para S. Carlos, Majestade? -perguntou o cocheiro, reverente.

-Não, ainda não…-respondeu, com voz trémula -Vamos primeiro pelo Rossio, preciso de apanhar ar, vai andando por aí até eu dizer, que ainda falta uma hora...…

Nessa noite estava particularmente melancólico. Lembrava o filho Pedro, precocemente colhido pela morte, a corte, que nunca aceitara Elise, mesmo depois de a fazer condessa, os ódios de Maria Pia e suas fúrias latinas. Regressara recentemente da Alemanha, onde visitara Antónia, em Sigmaringen, e na véspera voltara a falar com o Serpa Pimentel sobre o testamento, um lento adeus estava já em curso.

Lisboa estava deserta nessa noite fria, a récita não esgotaria e as tosses em S. Carlos seriam poucas, por certo. O elenco era razoável e o libretto em torno dos amores de Valentine e Raoul. Como Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Daphne e Chloé. Ou Fernando e Elise…

Elise. Antes de sair das Necessidades tomaram chá na biblioteca. Passara o dia cansado, ofegante, olhava e em volta via sombras desfocadas, mirando-a,sentada na bergére roxa, a custo lhe desvendava o vulto. A mão quente e macia confirmava a certeza duma paixão de anos, flirtando-a primeiro, e desposando-a depois, contra tudo e contra todos.

-Fernando, não devia sair nesse estado! –advertiu Elise, maternal. As noites estão frias e…

-Mas a música é quente, Elise. Só a música me aquece, por estes dias….

E fechando os olhos, relembrou outras noites em S. Carlos, os saraus na Pena, Paris. Arfando no cadeirão, pareceu escutar uma orquestra invisível, e qual maestro regendo, as mãos dançaram no vácuo, trémulas e já magras de carne.

-Elise, diga-me, meu anjo, têm vindo flores da estufa da Pena?

-Todos os dias, Fernando. Apesar do Inverno, todos os dias um estafeta vem trazer plantas da feteira, para os arranjos do palácio.

O velho rei sorriu. De todas as obras a que se dedicara, nenhuma como essa lhe dera tanto prazer. O Eschwege e o Cifka eram homens de bom gosto, mas fora ele quem idealizara sala a sala, pintura a pintura, um portentoso ninho à semelhança da sua Gotha natal. Pouco lá ia, agora, a viagem cansava-o e Kessler desaconselhava, um resfriado traiçoeiro poderia agravar-lhe a saúde, já frágil.

-Deve estar lindo, o jardim...-pensou. E lembrou o eucalipto plantado no dia do casamento, marco de amor de almas que tardiamente se encontravam. Ele já viúvo, estrangeiro num país de querelas, dedicado aos seus quadros e partituras, ela, a jovem promessa lírica que um dia o Lusitânia trouxe a Lisboa.

Tossindo, pediu mais um chá, Elise insistiu que se deitasse, cancelando S. Carlos. Sentia náuseas, incómodas dores no rosto, como se uma tenaz castigadora o apertasse. Resistiu, há já dois meses pensava ver essa récita. Levantou-se, e saiu na berlinda, cearia no regresso.

S. Carlos deslumbrava, com a parafernália de dourados, serafins e veludos. D. Fernando ocupou o seu camarote, enterrou-se no libreto, e ignorou os cortesãos bajuladores, que o saudaram da plateia. A função foi um sucesso, sete minutos de palmas e chamadas ao palco, noite cheia, afinal de contas. Ao sair do camarote, tropeçou num degrau e caiu desamparado, batendo com a cabeça na parede. Ainda atordoado, pareceu-lhe ver, disforme, uma valquíria que lhe estendia a mão, ao lado uma outra tocava harpa, e sentiu-se levitar, lentamente, um violoncelo invisível chorava a sua música favorita. Deu a mão à valquíria e dançando com as mãos, regendo a orquestra, suspirou, sorrindo, antes de entrar em coma: Elise….  


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