quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Selfie do ano que finda



2014 chega ao fim  com grande imprevisibilidade sobre o futuro da economia, bem como sobre a paz mundial. Conflitos da Rússia com a Ucrânia, depois da deposição de Yanokovitch e a degradação das suas relações com o Ocidente, derivada da anexação da Crimeia e sublevações no leste do país,a continuação dos conflitos em Israel e em Gaza, no Iraque, Síria e Afganistão, com a emergência de fenómenos como o do Estado Islâmico, o mistério do abate e desaparecimento de dois aviões da Malaysia Airlines, o esmagamento da frágil democracia egipcia com a “eleição” do general Sissi, o surto de ébola, os referendos na Escócia e Catalunha, ou o golpe militar na Tailândia. Tudo sinais preocupantes, num quadro de debilidade da recuperação económica e descrença nos sistemas representativos, como a emergência dos partidos anti-sistema ou radicais na Europa o reforça e demonstra. De positivo, deixaria o papel do Papa Francisco, e como momento alto do ano o seu discurso no Parlamento Europeu, a favor do trabalho e da dignidade da vida humana, a soçobrar no imenso cemitério que o Mediterrâneo vem sendo, e o Prémio Nobel da Paz para a jovem Malala. Destaque ainda para a abdicação do rei Juan Carlos, a eleição de Dilma no Brasil e a chegada de Juncker à Comissão Europeia.No obituário do ano, lembrar a morte de Ariel Sharon, Adolfo Suarez, do general Jaruselski , Eduard Schevardnadze, Ian Paisley ou Jean Luc Dehaene. 

No plano nacional, depois do ano ter começado com o trauma da morte de Eusébio, tivémos o adeus à troika, com a chamada “saída limpa”, e daí em diante, tudo parece ter descambado: a recuperação tem sido débil e inconsistente, o Tribunal Constitucional, contra a vontade do governo, garantiu o que devia garantir, a legionella atacou a norte de Lisboa, e os tentáculos da corrupção num Estado débil e clientelar vieram à tona, com os casos BES, Vistos Gold, Sócrates, ou a vergonha da adesão da Guiné Equatorial à CPLP. António Costa rendeu Seguro, Semedo afastou-se da direcção do BE e a selecção desiludiu, obrigando a trocar Bento por Fernando Santos. De positivo, a elevação do cante alentejano a Património da Humanidade, a Bola de Ouro de Cristiano Ronaldo, e, para quem é do Benfica, as três taças ganhas este ano pela equipa de Jorge Jesus. Morreram D. José Policarpo, Emidio Rangel, Medeiros Ferreira, Veiga Simão e Alpoim Calvão, entre os mais conhecidos, à esquerda ou à direita.

No plano da Cultura, sempre no fio da navalha, tivemos a saga dos quadros de Miró e o adiamento de grandes projectos, como a abertura do Museu dos Coches ou a regulamentação da Lei do Cinema. Carlos do Carmo recebeu um Grammy Latino, Sophia foi trasladada para o Panteão, e deixaram-nos grandes nomes como Claudio Abbado, Pete Seeger, John Philip Seymor, Paco de Lucia, Alain Resnais,Gabriel Garcia Marquez, Vasco Graça Moura, Charlie Haden, Paul Mazursky, Nadine Gordimer, Loreen Maazel, João Ubaldo Ribeiro, Robin Williams ou Lauren Bacall.

2015 trará os 600 anos da conquista de Ceuta, quando em Sintra se deu início à saga da nossa expansão marítima, e os 40 anos da descolonização, que pôs termo a esse período de 560 anos, bem como eleições legislativas no Outono, o desenvolvimento dos casos mediáticos na justiça, e a insegurança de não saber para onde vamos, neste mundo em cacos, onde a verdade de Pirro e a opacidade dos “mercados” continuarão a dominar um não tão admirável mundo novo. Eis a selfie possível deste 2014, tristonha e desfocada, onde só o Papa Francisco e Malala parecem sorrir a um canto, um sorriso amargurado, mas ainda assim de esperança.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

A sociedade civil e os dias que correm


A Alagamares-Associação Cultural

Para que servem as organizações não -governamentais, associações cívicas e a dita “sociedade civil “ em geral, nas quais associações como a Alagamares se inserem e pretendem desempenhar um papel?

Norberto Bobbio afirmou um dia que o cidadão, ao fazer a opção pela sociedade de consumo de massas e pelo Estado de bem-estar social, sabe que está a abrir mão dos controles sobre as atividades políticas e económicas por ele exercidas em favor de burocracias, privadas e públicas, e que em conjunto com a realização de eleições e a existência da burocracia, a democracia assenta para muitos na ideia de que a representatividade constitui a única solução possível nas democracias de grande escala, aí se esgotando a intervenção daqueles que se não assumem como agentes políticos directos.

Pode apontar-se Jürgen Habermas como um dos autores que melhor analisaram este alargado entendimento da democracia. A criação de esferas públicas que participem das instituições e as controlem, redesenhando a relação estabelecida com os cidadãos, possibilita a indispensável reconciliação da democracia participativa com a organização política tradicional do Estado, abrindo lugar para a participação dos actores sociais em fóruns amplos de debate e negociação, sem substituir, contudo, o papel dos representantes eleitos. A efectividade democrática está assim reforçada com uma sociedade civil organizada e com a dinâmica que ela desenvolve. Os movimentos, as organizações e as associações podem, a partir de sua actuação revigorar os sentidos da democracia, ocupando uma arena que lhe é natural e necessária.

O padrão democrático de uma sociedade passa hoje não só pela densidade cívica da sua sociedade civil, mas também pela pluralidade de formas participativas institucionalizadas capazes de inserirem novos actores no processo decisório destas mesmas sociedades. Acredita-se, com isso, que os actores societários deverão não só abordar situações problemáticas e buscar influenciar os centros decisórios, mas também assumir funções mais ofensivas no interior do Estado.

Na linha dos estudos de Habermas, a sociedade civil pode ser compreendida como o espaço público não estatal, composto por movimentos, organizações e associações que captam os ecos dos problemas sociais na esfera privada e os transmitem para a esfera pública.

São as ONGs, os movimentos sociais, as comissões, grupos e entidades de direitos humanos e de defesa dos excluídos por causas económicas, de género, raça, etnia, religião, portadores de necessidades físicas especiais; associações e cooperativas, fóruns locais, regionais, nacionais e internacionais de debates e lutas por questões sociais; entidades ambientalistas e de defesa do património histórico e arquitectónico, etc.

De entre os aspectos positivos da ação da sociedade civil organizada, apresentam-se: a pluralidade do discurso e o estabelecimento do diálogo construtivo, tendo-se em vista as múltiplas vozes que se querem fazer ouvir na sociedade civil; a promoção da denúncia, tornando públicas as situações de injustiça e de violação de direitos; a protecção do espaço privado, reforçando os limites do Estado e do mercado; a participação directa nos sistemas políticos e legais, estimulando-se e fortalecendo-se leis e políticas públicas que promovam os direitos humanos; e a promoção da inovação social.

Dos desafios a serem enfrentados pela sociedade civil destacam-se: a fragmentação (temática e geográfica), gerando disputa entre as entidades e organizações, e enfraquecendo as suas vozes perante os poderes fácticos e formais, ou a dependência e escassez de recursos financeiros. A fim de fortalecer a actuação da sociedade civil organizada, deve esta melhorar a capacidade de comunicação e educação; investir em modelos socialmente inovadores e construir redes que evitem a fragmentação e fortaleçam o uso dos recursos.

Vivemos dias de chumbo, mas também de desafio, e se certas patologias, como o desemprego ou a emigração enfraquecem o número e a pujança dos que militam em associações da sociedade civil como a nossa, novas oportunidades, caldeadas pela experiência e o ânimo de novos colaboradores vão permitindo este renovar de ciclo, com novos protagonistas e novas (ou nem tanto) lutas para abraçar.

Entendo a participação na vida associativa e o papel da sociedade civil como um contributo para o pluralismo e um reforço essencial da democracia participativa, e tão independente e genuíno será esse trabalho quanto mais distanciadas as associações estiverem dos poderes político-partidários, grupos económicos ou agentes que a coberto da participação mais não pretendam que as usar na sua escalada para o poder, e é esse o fio da navalha em que muitas vezes as associações e a sociedade civil se vê enredada. Independentes dos políticos, mas não da discussão das políticas, actores mas não figurantes, eis o nosso papel, activo ou reactivo mas sobretudo vivo.
 

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Lembrar o 1º de Dezembro


Quando era criança, não obstante as exaltações patrioteiras do Estado Novo em torno duma História de Portugal épica e monumental, habituei-me na escola a com prazer celebrar o 1º de Dezembro, data gloriosa recordando o dia em que Portugal ao fim de 60 anos de ocupação espanhola recuperara a independência de país secular e orgulhoso. Bandas saíam à rua, entoando o Hino da Restauração, e, sobretudo no Alentejo, baluarte da resistência nacional nesse período (que culminou com a Batalha das Linhas de Elvas, onde um Ribafria de Sintra se sagrou herói da independência) onde o 1º de Dezembro sempre teve um sabor especial, com colchas às janelas, ruas engalanadas e bandas desfilando alegremente. Não foi por acaso que logo de seguida Nossa Senhora da Conceição foi consagrada como padroeira de Portugal e os reis portugueses deixaram de  ser coroados.E era também ocasião para demonstrar que apesar de hoje nada nos dever opor a “nuestros hermanos” sempre nos conseguimos afirmar no contexto peninsular como Nação orgulhosa de oitocentos anos, quando muitas comunidades do lado espanhol  não conseguiram vingar, da Catalunha à Galiza, das  Astúrias a Leão.
Nestes tempos de penoso e vil viver, é sintomático que a obsessão economicista e redutora dos contabilistas que em nome dos agiotas nos governam, não contentes com levarem o país à ruína, queiram também destruir a sua base moral unificadora, atacando os símbolos, e significativo é que não havendo mais nada para fazer, se lembrassem de suprimir feriados, e entre esses o do 1º de Dezembro. Isto é, Portugal, que já não tem um dia que celebre a independência, deixa de celebrar aquele em que depois de um hiato de 60 anos a retomou. Mostram assim os governantes ter vergonha de um Portugal independente, humilhado agora na sua dignidade pela dolosa incompetência dos novos Miguéis de Vasconcelos mandados pela aviltante troika, e pela nova Duquesa de Mântua, a seráfica Angela da Prússia.
Há gestos que gritam e flagelam, e aos poucos deixarão de existir portugueses em Portugal e apenas contribuintes a cujos bolsos assaltar sem pudor, descamisados à mercê do Banco Alimentar, e traidores cujos nomes nem numa lápide de cemitério deveriam constar. Ah Portugal, Portugal..., como diria o Jorge Palma.