sábado, 26 de abril de 2014

A última noite de Mário de Sá-Carneiro



Os frascos lá estavam no quarto do Hotel de Nice, em Montmartre, o suicida olhava-os com os olhos vidrados, denotando uma calma sepulcral que qual vulcão nunca alcançara em vida. José Araújo acompanhara o seu último dia, em Lisboa, e já póstuma, Pessoa mais tarde receberia a sua última carta. Enquanto o médico confirmava o óbito, José recolhia alguns papéis, um lençol branco cobriu o corpo do amigo, partido aos vinte e cinco anos.

Morte esperada, pensou Araújo, nunca a imagem de Tomás Cabreira Júnior pondo termo à vida na escada do liceu Camões, anos antes, desaparecera da cabeça de Mário. Com ele escrevera Amizade, uma peça de teatro, nenhum deles vivia já.

Na última noite Mário estivera sempre em silêncio, escrevendo, despedindo-se de si, lembrando os rostos que lhe escaparam na estrada da vida. A mãe, que partiu tinha dois anos, o pai, ausente em África, o Santa-Rita Pintor encharcando-se em aguardente, Helena, a francesa que o amara a troco de alguns francos. Só José ficara, testemunha da despedida, e aos frascos de estricnina, libertadores.

Paris. O deslumbramento, primeiro, depois da desilusão de Coimbra, o Café de la Paix e Baudelaire, as garçonettes, a Sorbonne, Pigalle, Picasso pintando no Boulevard des Capucines. E depois a rotina, a usura de novidade, solitária, esperando a mesada que o pai mandava de África. Ainda voltou a Portugal, dois anos antes, para com Pessoa e Almada lançar o Orpheu. Mas Lisboa era pequena e serôdia e apenas saíram dois números, pagos pelo pai. E Paris de novo, as cartas para Pessoa confessando a perdição, os dois perdidos nos seus labirintos. Poeta do impossível, incapaz de amar ou ser amado, enredado numa poética masturbação, em busca da salvação impossível.

José Araújo recordava-o descamisado ao fundo da cama, o éter num psyché de madeira, a si apenas confessara cansaço. Cansaço por abraçar e não ser amado, cansaço por ver o arco-íris e apenas chuva,vinte cinco anos entediado. Morreria a tempo de não ter biografia. Nos últimos tempos, escrevera a Pessoa, mas Pessoa nada ripostara. Não serviria de nada, o plano estava gizado. Órfão de amor, pária de si mesmo, ficaria pelo segundo capítulo dum livro deliberadamente incompleto.

Encerrado o quarto pelos gendarmes e removido o cadáver, José Araújo voltou a Lisboa, uma semana mais tarde encontrou Pessoa no Martinho. Acabrunhado, tomava um café e uma aguardente, a poção que o mantinha vivo entre heterónimos tão cambaleantes como ele. Araújo levou-lhe os inéditos que Mário deixara com ordem de lhe entregar. Sem ler, guardou-os no bolso do sobretudo, e ripostou:

-Quem di diligunt adulescens moritur! Ante o silêncio expectante de Araújo, traduziu: “Morre jovem o que os Deuses amam. Plauto!

Morrendo para finalmente viver, Mário de Sá Carneiro, decadentista redentor, futurista sem futuro, esvaíra-se em estricnina e, narcisista, morria quando bem quis, niilista de emoções, tristes e trágicas. Escrevera pouco, e a cada livro, acrescentara páginas no diário da sua morte. Pessoa, feiticeiro do Caos, sentiu-o, mas nada disse.

Ia Junho de 1916. Noite cerrada, no esconso do Largo de S. Carlos, leu as cartas de Mário, e buscou uns papéis na secretária de madeira. Entre cautelas de penhores e uma carta astrológica, encontrou o poema-testamento que Mário lhe enviara tempos antes:

Hoje, de mim, só resta o desencanto /Das coisas que beijei mas não vivi... /Um pouco mais de sol - e fora brasa, /Um pouco mais de azul - e fora além. /Para atingir faltou-me um golpe de asa... /Se ao menos eu permanecesse aquém...

Emborcou um absinto e apagou a luz. A de Mário acendera-se para a eternidade.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

A recruta de Artur Baleizão



Reprovado em Direito e com o segundo ano em atraso, em Março de 1974 Artur Baleizão foi incorporado em Santarém, Cavalaria, o ramo onde andava uma besta por cima e outra por baixo, como dizia o avô, veterano da I Guerra. A viagem desde o Alentejo até nem era longa, mas a perspectiva de ir parar a África mais tarde não o deixava tranquilo. O pai já falara com o capitão Maia, conterrâneo de Castelo de Vide, mas a hipótese de ir para o Ultramar finda a recruta era incerta ainda, as coisas estavam acesas na Guiné desde que o general Spínola saíra e editara um livro que deixara muita gente nervosa. Na véspera da incorporação tinham ocorrido incidentes nas Caldas, nunca percebera porquê, mas para ele, jovem miliciano, que nem os atacadores sabia atar, com espinha bifida e óculos graduados, estava como um papagaio em capoeira, suportando estoicamente a solha frita à quinta-feira e o Fernandes a ressonar e a fazer as camas à espanhola.

Nessa quarta-feira a ordem de recolher foi às nove, antes ainda, telefonou à Mariana para que se encontrassem  em Lisboa no fim-de-semana, para um copo no Jamaica. Na quinta de manhã haveria instrução de sapadores e ainda lhe doíam as pernas do cross da véspera, vida estúpida para quem não queria fazer carreira, a farda feijão verde alvo de troça em Santa Apolónia. Não conseguiu dormir logo, havia barulho na messe dos oficiais, copos pela certa, o Paiva, do pelotão dele, estava de serviço, esperaria por ele para um bate papo, só a luz de presença estava ligada na caserna. Aí pelas onze e meia, o segundo-comandante, furibundo, atravessou a parada aos gritos, Cavalaria não era mole e Santarém era a elite. Parte dos milicianos seguiria para o contingente NATO, Tancos ou Santa Margarida, outros para África, Nambuangongo parecera ter sido coisa séria.

Já perto da uma, o Paiva não aparecera ainda, mas uma algazarra soou, vinda da parada, aparecendo o tenente Barbeitos aos gritos à  porta da caserna e a mandar formar em dez minutos. Mais uma praxe, pensou, enfadado. Todos formados, foram então informados que sairiam para uma missão em Lisboa. Ordem de equipar o M-64 e G-3 municiada, duas rações de combate por homem, até parecia ter rebentado a guerra, pensou, lembrando a guerra do Solnado, aquele folclore sempre lhe parecera obsoleto e teatral, mas havia que ser resiliente, antes Lisboa que Bissau ou os Dembos.

No meio do reboliço, descortinou o capitão Maia, seu patrício, usando um camuflado e falando em murmúrio com uns graduados. Ordenando sentido, dirigiu-se aos recrutas na formatura:

-Homens! Se bem que ainda não tenham completado a vossa recruta, a vossa destreza vai ser hoje testada! Há uma missão a cumprir: marchar para Lisboa, e controlar o acesso a vários locais, ao Banco de Portugal, à Rádio Marconi e ao Terreiro do Paço. A vossa missão visa devolver a dignidade ao povo português e demitir o governo que tarda em arranjar soluções para os problemas inadiáveis do nosso país! Quem estiver contra, que dê um passo atrás!

O que parecia uma praxe, era afinal coisa séria, parecia um pronunciamento militar, que fazer? Por um lado, a política pastosa que o atirara para a tropa causava-lhe repulsa, mas e se falhassem, mal tinha feito instrução de tiro, o Forte de Elvas poderia bem ser o fim para a inesperada aventura nocturna. Ninguém deu passos atrás. Um oficial correu entretanto a falar ao capitão Maia:

-Está tudo em marcha. A senha foi confirmada via Romeo, tudo Oscar Kilo, meu capitão!

-Óptimo! -saltando para o Chaimite, Salgueiro Maia mandou avançar para a porta de armas, nessa noite não haveriam camas à espanhola.

Um esquadrão de reconhecimento com dez viaturas blindadas e outro com cento e sessenta homens, doze viaturas, duas ambulâncias e mais um jipe saía amotinado para Lisboa. Tudo era confuso, mas excitante, Artur e o Paiva, no chaimite, estavam intrigados, com sorte talvez ainda essa noite bebessem um copo no Cacau da Ribeira.

A entrada em Lisboa ocorreu pelas cinco e meia. No Campo Grande, um polícia sonolento olhou desconfiado para a coluna mas não interferiu, manobras com certeza, não houvera nenhum alerta. O Paiva e o esquadrão dele foram para o Banco de Portugal, Artur e o grupo do capitão Maia tomaram posição no Terreiro do Paço, já carrinhas com legumes da Malveira se dirigiam para o Cais de Sodré. Sem encontrar grande oposição, Salgueiro Maia contactou pelo AVP1 com um misterioso Posto de Comando, dando conta da situação:

-"Informo que ocupámos Toledo (T.Paço), Bruxelas (Banco de Portugal) e Viena (Rádio Marconi). Diga se escuta!

-Afirmativo! -respondeu uma voz algo metalizada do outro lado. -Papa Charlie no controlo!

As coisas pareciam correr bem e sem oposição, até o comandante distrital da PSP veio oferecer colaboração, descongestionando o trânsito. Com o amanhecer, o primeiro 28 para a Graça cruzara já a praça, surpreso com o aparato. Artur aproveitou para se dirigir ao capitão Maia:

-Meu capitão, vamos dar cabo do Marcelo, não vamos?

-Podes escrever, Artur, temos de pensar nos nossos filhos, e em Portugal! Esta é a nossa hora! -respondeu, pondo-lhe a mão no ombro. Apesar de sereno, tinha um ar cansado, aparentemente nenhuma coluna mais viria juntar-se-lhes, eram doze blindados com recrutas  contra o poderoso  Império, que aparentemente parecia não ir a jogo.

Chegando gente aos ministérios, alguns oficiais afectos ao governo apareceram a desafiar os amotinados, chegando o ambiente a aquecer com as provocações de  Ferrand de Almeida, a recusa dos seus homens em atacar o esquadrão de Maia fez passar os Panhard para o lado dos homens de Santarém. Artur regozijava, a farda verde  da chacota tornava-se agora símbolo de tenacidade e de verde-esperança.

À medida que as notícias dos acontecimentos se iam espalhando, e apesar dos apelos para ficar em casa, as pessoas começaram a invadir as ruas. Com um frémito na espinha, Artur viu a Mariana a acenar-lhe de lágrimas nos olhos perto da Rua do Arsenal, o copo no Jamaica chegaria mais cedo. Um beijo, soprado de longe, foi o sinal de sucesso do movimento.

Alucinantes, os acontecimentos sucederam-se durante a manhã: pessoas saindo à rua, saudando e oferecendo cigarros, a deslocação apoteótica para o  Largo do Carmo, o abraço emocionado ao Paiva e aos camaradas do esquadrão. Uma florista do Rossio ofereceu-lhe um cravo vermelho, logo guardado para Mariana.

Passaram muitos anos, o orgasmo colectivo daquela extraordinária quinta-feira em que não houve instrução de sapadores, mudou o país de forma definitiva. Ainda hoje, advogado em Castelo de Vide, não passa um dia sem que Artur deixe uma flor na soleira da casa onde nasceu o capitão Maia, vertendo uma melancólica lágrima ao lembrar aquela madrugada chuvosa em que um punhado de recrutas saltou à pressa do beliche para um encontro marcado com a História.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Malhas que Abril teceu



Quinze anos, levava Bento Rodrigues no Ministério da Agricultura. Simples terceiro oficial, nos anos sessenta, subira a pulso na repartição, numa cinzenta sala interior, sem vista para o Terreiro do Paço, submetendo despachos aos "concordos" dos sete directores gerais com quem trabalhara, todos eles, veneradamente, “ a bem da nação”.

O senhor doutor Marcelo Caetano já lhe havia garantido reforma na velhice, que Deus o guardasse, e a mãe, lá na aldeia, obtivera uma pensão da Casa do Povo. O António, estava a concluir o Ateneu, e com orgulho da família, iria entrar em Económicas.

Não tinha vícios repreensíveis. Não fumava ou bebia, apenas torcia pelo Belenenses. Uma vez por ano, toda a família ia passar o Agosto na casa duns primos, na Foz do Arelho, e ajudar na apanha das batatas, que depois recheariam o carro e a dispensa no Inverno.

Era um homem satisfeito, bom cristão, sempre pontual, casaco e gravata usados, mas apresentáveis, o funcionário público que o País precisava, não percebendo como é que turras instigados pela corja bolchevista atacavam o nosso glorioso trabalho no Ultramar.

Durante alguns anos, a pedido do senhor director geral, discretamente lhe elaborou relatórios sobre as conversas que ia ouvindo a alguns técnicos mais ingratos com o que a Nação lhes dava, e que, sussurrando pelos cantos, iam instigando sobre a necessidade de reformar a lavoura, sobretudo no Alentejo, criticando as avisadas opções do terceiro plano de fomento.

-Esta gente precisa de rédea curta, há sempre bicho até na melhor maçã, Rodrigues!- alertava o doutor Madureira, chefe de divisão da confiança de quatro ministros, ”todos grandes portugueses”, como costumava repetir.

E Rodrigues lá cumpria religiosamente o patriótico trabalho de expedir ofícios, e diligentemente vigiar os prevaricadores da lei e da ordem, na discrição do seu canto no Ministério. Por vezes puxava conversa com alguns dos engenheiros, a pretexto do tempo ou da prestação do Benfica na Taça das Cidades com Feira, assim obtendo preciosas informações para o leal dr. Madureira,

Uma quinta-feira chuvosa, já em 1974, cenário anormal e surpreendente se lhe deparou à chegada ao Ministério, às cinco para as nove, sagrada hora da entrada, durante mais de quinze anos. Veículos militares ocupavam o Terreiro do Paço, e militares armados gesticulavam e rodeavam os vetustos ministérios. Tentou entrar, mas mandaram-no para casa, que ficasse atento às rádios.

O mundo de Bento Rodrigues mudou muito desde então. Aos poucos, do espanto pelo sucedido com a “tal Abrilada”, passou à revolta, e da revolta á resignação.

No Ministério passaram ministros militares, alentejanos gritando por reforma agrária, o doutor Madureira, injustamente, foi saneado.

 Com o tempo, foi-se adaptando. Afinal, a bem ver, o país estivera estagnado, a guerra fora injusta, os malandros dos latifundiários não passavam de ociosos proprietários de campos escandalosamente abandonados. Revolução à cubana nunca, que a NATO não deixaria, mas liberdade com responsabilidade, a Europa do Mercado Comum, isso sim, anuía.

Certo dia, com surpresa, foi convidado por um partido de esquerda para candidato à  Junta de Freguesia. Agradado, lá aceitou. Foi eleito.

Dois mandatos,várias placas em ruas, e três parques infantis depois, o partido estava rendido. Estava na calha para a vereação nas eleições seguintes.

Bento Rodrigues reformou-se há alguns anos. Na hora da despedida, foi agraciado com a medalha de ouro do município, agradecimento sincero ao contributo insubstituível que dera para as causas da democracia e da liberdade.