domingo, 9 de junho de 2013

Molly Malone



“In Dublin´s fair city/Where the girls are so pretty/ I first set my eyes on sweet Mollly Malone”. A música ecoava, nostálgica e doce, no balcão do 0´Leary, no Temple Bar, ao ritmo das Guiness, música dos Chieftains, Dubliners e outros baladeiros da green Ireland animavam as noites da terra do caldeirão de ouro na ponta do arco-íris. Assim era nas lendas, não tanto na realidade. Acossado o tigre celta, o desemprego espreitava e casas ficavam por vender. Para Júlia, o emprego como hospedeira na Ryanair, antes sonho e oportunidade, era agora diário risco, dependente do apertar de cinto com a crise.

Júlia partira em 2007, um curso de História e o desemprego fizeram-na trocar Lisboa e o Bairro Alto pelas neblinas de Dublin, cidade alegre e sempre pronta para o crack, a maneira irlandesa de fazer a festa nos pubs e em torno de sumo de cevada. Três meses depois, conheceu Patrick no O´Leary, jovem broker na bolsa, ao som de Molly Malone iniciaram uma relação forte e apaixonada. Entre viagens para o continente, serviços low-cost e jantares no Gogarty’s, o tempo passou e o regresso a Portugal adiado.

Agora, de novo no O´Leary, pensativa e bebendo um cappuccino, tudo era diferente: a Patrick, que há semanas se queixava de enxaquecas, após exames fora diagnosticado um tumor no cérebro, não podiam operar, as sessões de quimioterapia traziam-no enfezado e triste; de Portugal as notícias eram pouco animadoras, a loja de móveis do pai falira, e pensava retirar-se para a terra, onde com o dinheiro das poupanças viveria com a mãe o resto dos seus dias. Ela mesmo, diariamente via colegas despedidos ou transferidos, a política da empresa era de contenção.

Liam, bandolinista e animador da noite, era já um velho conhecido, simpatizara com ela quando um dia lhe cantou um fado, numa voz tão cristalina que logo ficou fã. Anos antes fora amigo de Edge, dos U2 e juntos correram bares e pubs antes de ficarem famosos. A par da história de Júlia, nessa noite depois de cantar o Whiskey in the Jar pela enésima vez, sempre como se fosse a primeira, sentou-se no balcão e pediu mais um pint. Júlia estava tristonha mas sorriu ao velho amigo, castiço com os seus cabelos brancos compridos rematados por um rabo-de-cavalo, a realçar o ar rebelde de velho cantor de estrada. Positivo, Liam animou-a:

-Come on, litlle portuguese, as coisas hão-de melhorar! Nada que um bom pint não resolva!

Júlia esboçou um sorriso, Patrick ficara em casa, cada vez menos sociável e ela que sempre o acompanhava decidira-se a espairecer, no aconchego do O’Leary.

-As coisas estão sérias, Liam. O Patrick está a esmorecer com a doença, e na Bolsa parece que querem aproveitar para lhe propor a rescisão, está tudo muito negro!

-Bloody bastards! -rosnou o velho baladeiro- Há que ter esperança! E pegando na guitarra cantou uma balada só para ela. Uma envergonhada lágrima caiu-lhe da face, salitrando o cappuccino. Terminada a canção, acercou-se de Júlia, pegando-lhe as mãos e olhando-a com um ar doce, animou-a:

-Júlia, estamos na Irlanda, a terra das fadas e dos duendes, onde tudo acontece. Sabes porquê? Porque há magia nas coisas. Quando queremos muito uma coisa, ela acontece, porque a força do homem é a maior de todas as magias! Interrompendo para um golo no pint, continuou:

-Um dia destes hás-de encontrar o teu four leaf clover! Um trevo de quatro folhas, you know? E quando o encontrares, guarda-o, pois todos os teus desejos se tornarão realidade. Uma folha é para a esperança, outra para a fé, a terceira para o amor e a quarta para a sorte. Believe me, i know what i’m saying!

Júlia abraçou o amigo, que não resistiu a mais um pint, e voltou para casa. Acabrunhado, Liam fazia zapping, desinteressado de tudo, o Irish Times anunciava mais desemprego, a crise atacara forte o orgulhoso tigre celta. Júlia abraçou-o e deitaram-se em silêncio, a noite estava fria e os seus corações também.

No dia seguinte, a caminho do aeroporto, para um serviço até Londres, Júlia atravessou o Phoenix Park, alguns esquilos saltitavam e o passeio era revigorante, precisava de silêncio e paz interior. Perto duma árvore, alguém esquecera um livro, o Ulisses de Joyce, o grande escritor irlandês. Ao pegar-lhe, mesmo ao lado, deparou com alguns trevos silvestres, um, mais desenvolvido tinha quatro pétalas, era a primeira vez que via um, raro e símbolo de sorte. Colheu-o, admirando-o fixamente, colocou-o dentro do livro e levou-o, Liam ficaria surpreso, quando soubesse, ainda na véspera lhe falara da lenda. Coincidência, pensou Júlia, uma flor é só uma flor.

O voo para Londres foi sem história e pela noite regressou a casa, comprara pizzas no aeroporto, com um vinho trazido da última visita a Portugal, tentaria animar Patrick, encafuado no quarto depois da sessão de quimioterapia. Metida a chave à porta, estranhou a luz mortiça, uma música suave tocava na aparelhagem e Patrick, bem-disposto, vinha da cozinha com um rosbife apetitoso. Júlia estranhou, a mesa estava posta com velas, um incenso de jasmim exalava do parapeito da janela. Antes que tivesse tempo de abrir a boca, Patrick beijou-a e puxou-a para o sofá:

-July, i have great news! Estive no hospital de manhã, o doutor Callaghan viu os meus exames e disse que estou curado! O tumor encolheu, e pode ser retirado sem perigo!

Júlia abraçou-o com veemência, beijando-lhe a cara e pescoço, alguma luz finalmente num túnel cada vez mais escuro. Mas não era tudo:

-Ah, e mais! Ligaram da Bolsa e ofereceram-me uma chefia no sector tecnológico. Isn´t that marvellous?

Arregalando os olhos, Júlia correu para a mala e sacou do Ulisses que encontrara no Phoenix Park. Lá estava o trevo de quatro folhas, Liam acertara: a magia, fazem-na os homens.

No dia seguinte, já com Patrick, voltou ao O´Leary, Liam com um pint ao lado tocava e cantava, posto a par das notícias abraçaram-se os três, fazendo o seu crack especial. Retomando o lugar junto da banda, Liam pediu silêncio e falou para os presentes que enchiam o bar:

-Fellows, hoje temos connosco a Júlia e o Patrick. Peço-vos que cantemos com eles, pois magia foi feita na sua vida. Um brinde ao Patrick e à Júlia!

E pegando na guitarra, desfiou a velha e mágica canção: “In Dublin´s fair city/Where the girls are so pretty/ I first set my eyes on sweet Molly Malone....”

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